GERALDO PEREIRA,
SAMBISTA COM UM PÉ NO FUTURO
Ele foi um dos
precursores da Bossa Nova,
evidência reconhecida até por
João Gilberto, o “papa” desse movimento, ao lado de Tom Jobim e Vinicius de
Moraes e primeiro artista a regravar seus sambas “Falsa Baiana” e “Bolinha de
Papel”, no início da década de 60.
Com isso, resgatou do nosso mar de esquecimento, como um
escafandrista de plantão, esse compositor fundamental, até ali deixado à margem pelas rádios e gravadoras
como um barco à deriva, embora abarrotado de sublimes tesouros musicais.
Só a partir de então
suas canções passaram a ser revisitadas e
gravadas pelos maiores astros da
nossa música popular, dentre eles Elis
Regina, Chico Buarque, João Bosco, Gal Costa, Noite Ilustrada, Paulinho da
Viola, João Nogueira, Jair Rodrigues,
Zizi Possi e tantos outros.
Geraldo Theodoro
Pereira nasceu em Juiz de Fora (MG), em 23 de abril de 1918. Ignora-se quem seria seu pai. Sua mãe,
filha de antigos escravos libertos, o abandonou nos primeiros anos de
vida. Foi deixado na casa de parentes
para, mais tarde, só com o curso
primário, seguir para o Rio de Janeiro, ao lado do seu irmão mais velho, Mané
Araújo, que lá seguiria para tentar a sorte.
Antigos moradores da Mangueira como os sambistas Cartola e Carlos
Cachaça lembravam de que o menino Geraldo Pereira, com cerca de 11 a 12
anos, lá teria chegado com o irmão,
entre os anos de 1929 a 1931.
Ali, mais tarde,
seria assíduo frequentador da casa de um
tal Alfredo Português, onde “batia ponto
regularmente”, ao lado dos sambistas
acima, além de Nelson Cavaquinho e Nelson Sargento. Sabe-se que Cartola foi seu mestre de violão,
assim como Aluísio Dias.
Casou-se em 1938 com
Eulíria Salustiana, a Nininha, tendo um filho com ela. No entanto, diziam que
seu grande amor foi a mulata Isabel Mendes da Silva, que trabalhava como
pastora[1]
em programas de rádio. Viveu com ela até
morrer, em 1955, e dedicou-lhe belas
canções, como “Escurinha”.
Trabalhou como soprador
de vidro em uma fábrica, e foi operário de uma cerâmica, onde sofreu grave acidente, esmagando a mão. Com a modesta grana recebida de indenização,
comprou um violão e começou a fazer a vida.
Já ligado no samba, trabalharia durante o dia como motorista de caminhão
coletor de lixo da Prefeitura, e à noite,
apresentava-se em rádios e
boates, numa época em que compositor ainda não cantava profissionalmente.
Alto, magro e franzino de corpo, gostava de trajar terno branco e tinha muitas superstições. Adorava viver cercado de belas mulatas, assumindo, assim, de forma ostensiva, seu “status” de artista popular de rádio e shows. Era negro, mas tinha olhos amendoados, claros e quase verdes, segundo seus biógrafos. Procurava disfarçar o cabelo carapinha cortando-o rente. Sabe-se que não era de briga, mas não gostava de levar desaforo para casa. Conforme seus contemporâneos, sua ruína teria sido provocada pela inabilidade em conciliar sua vida amorosa e a bebida. Teve vários problemas de saúde em sua breve existência, e isso muito o prejudicou.
Compôs
seu primeiro samba, “Farei Tudo”, em
1938, infelizmente barrado pela censura. Isso fez com que o
primeiro artista a gravar uma
composição de sua lavra fosse Roberto Piva, mas só no ano seguinte, com “Se Você Sair Chorando”. Antes de
gravá-la, Piva a levaria para Pixinguinha orquestrar, quando este manifestou o
desejo de conhecer seu autor. E disse mais: “Olha, seu Roberto, só existem sete
notas musicais, por isso é difícil inventar alguma novidade em termos de
combinação de notas sonoras. Mas essa
melodia é realmente original”.
“Acertei no Milhar”, parceria com Wilson
Batista, na voz de Moreira da Silva, em 1940, foi seu primeiro sucesso. Nesse mesmo ano, muitos cantores haviam lançado suas canções, dentre eles seu grande
amigo Ciro Monteiro – gravou doze, só
dele, um recorde! -, Aracy de Almeida,
Isaurinha Garcia, Dircinha Batista, o Conjunto Quatro Ases e Um Coringa,
Odete Amaral, Jorge Veiga, Déo e Alcides Gerardi.
Apesar de gravada em 1944, inicialmente pelos Anjos do Inferno, “Bolinha de Papel” só alcançaria sucesso de público quando gravada por João Gilberto.
As canções “Mais Um Milagre” e “Bonde Piedade”, de sua
autoria, gravadas em 1945, foram suas primeiras experiências como
intérprete. Passados cinco anos, voltou
a fazê-lo, agora com “Pedro do
Pedregulho”. Ao todo, gravou com sua voz perto de trinta
músicas. Sintomaticamente, em 1954,
lançou “Eu Vou Partir”, como que
pressagiando seu fim poucos meses mais tarde.
Para João Gilberto, que muitos estudiosos consideram o mais perfeito intérprete da história da música, no mundo, Geraldo Pereira foi também uma espécie de descoberta. Dele, João declarou que “era aquele malandro alto, forte. Mas não era daqueles tipos agressivos – “Que é que há? Como é que é?” Era um malandro bem suave, falava manso, tinha aquela ginga certa de quem não tem pressa e sabe das coisas. Mas nem por isso ele perdia o velho estilo dos valentões da Lapa”.
Quando ainda morava numa pensão e dividia um quarto com o cantor e compositor Luiz Carlos Paraná, nos anos 50, no Rio, João Gilberto nos deixou este despojado depoimento sobre um curioso episódio vivido com Geraldo Pereira: “Eu ainda era do conjunto Os Garotos da Lua, nem pensava em cantar sozinho, quando um dia ele me convidou para sentar com ele num bar daqueles, lá na rua da Lapa. Enquanto a gente tava tomando umas coisas no bar, passaram uns sujeitos e me estranharam, ficaram olhando da porta. E ele: ‘Que é que vocês tão olhando? Isso aqui (era eu) é gente minha!’ Os caras foram embora. O samba dele era leve e cheio de divisões rítmicas, isto sempre me chamou a atenção. Ele não tinha consciência disso, mas foi um inovador na música popular brasileira na década de 1940”.
Maduro e já como artista, chegou a fazer shows com suas pastoras em boates do Rio e São Paulo e até no Cassino da Urca. Reconhecido nas camadas populares, participou, em 1951, com o samba “Ela”, do primeiro LP (Long PlayIng) produzido no Brasil, até com figuras do rádio e do cinema que não eram cantores – o ator e apresentador César Ladeira e o cômico do cinema Oscarito, por exemplo. Essa novidade, espetacular para o mundo da música, fora lançada em 1948 pela Colúmbia Records, em solenidade no Hotel Waldorf Astoria, de New York, com o disco “The Voice of Frank Sinatra”.
Depois que João
Gilberto relançou “Falsa Baiana” e “Bolinha de Papel”, revelando o mapa da mina, tornou-se impossível
ignorar a importância e influência de Geraldo Pereira em nosso cenário
musical. A partir dali, uma avalanche de grandes intérpretes e
compositores iria matar a sede nessa fonte.
Paulinho da Viola, por exemplo, que já o estudava e considerava um dos
maiores compositores de todos os tempos, fez uma excelente releitura de “Você
Está Sumindo”, de Geraldo Pereira e Jorge de Castro, em 1971, além de
cantar “Falsa Baiana”. Também João Nogueira, no início dos anos
80, gravou um estupendo LP, homenagem a
três gênios do samba que habitavam seu coração: Noel Rosa, Geraldo Pereira e
Wilson Batista. Nele incluiu do sambista
mineiro “Bolinha de Papel”, “Você está
Sumindo” e “Pedro do Pedregulho”. Em 1990, foi a vez de Chico Buarque rasgar seda: gravou dele e
Nelson Trigueiro, “Sem Compromisso”, no seu LP “Chico
Buarque ao Vivo”, registrado na
prestigiosa casa de shows Zenith, no Parc de La Villette, em Paris.
Frequentador habitual do Café Nice, A Capela e o Elite Clube, no Rio, como ator faria ligeiras pontas em alguns filmes da época. Em 1942, apareceu no célebre documentário de Orson Welles “It’s All True” (“É Tudo Verdade”), no Rio, nunca finalizado. Depois, em 1944, participaria do filme musical “Berlim na Batucada”, dirigido por Luiz de Barros. Em 1951, com o mesmo diretor, atuaria na comédia “O Rei do Samba”, título homônimo ao do filme de 1999, em sua homenagem, que seria realizado em Juiz de Fora por nosso amigo José Sette. No teatro, foi coadjuvante da peça “Anjo Negro”, de Nelson Rodrigues, que ficou em cartaz em 1948, no Rio, e em 1949, em São Paulo.
Surpreendente era sua
postura antimachista, para a época,
externada em várias de suas letras, quando a mulher ainda não podia
sequer votar ou trabalhar fora sem autorização do marido. Ele iniciou sua incursão pelo inseguro mundo
da música como compositor no período áureo do samba e já chegou inovando, embora ainda não tivesse
consciência disso. Lançou o que se convencionou chamar samba sincopado ou
teleco-teco, ritmo ainda desconhecido e que acabaria influenciando todos os
futuros músicos da Bossa Nova. Estes
seriam formados por pequenos grupos de jovens da Zona Sul do Rio, que passariam a reunir-se despretensiosamente
para tocar violão – inclusive João Gilberto -- no apartamento da adolescente
Nara Leão, em Copacabana, no final dos anos 50, dentre eles Roberto Menescal,
Carlos Lyra, Chico Feitosa e Ronaldo Bôscoli.
No livro “Um Certo
Geraldo Pereira”, de Alice Duarte Silva, o compositor Cyro de Souza lembra que
a batida da Bossa Nova, de João Gilberto, pode ser encontrada nos sambas de
Geraldo Pereira, criada por ele duas décadas antes do disco precursor de João
Gilberto, “Chega de Saudade”, ser gravado e que faria a cabeça de todo mundo e
mudaria o panorama musical brasileiro de pernas pro ar.
Segundo afirmou o já citado João Nogueira, outro “cobra criada” do nosso melhor samba, Geraldo Pereira “era vara madura que não cai e deixou belos e bons sambas que influenciaram outros segmentos da MPB, cujo melhor exemplo foi a Bossa Nova”. Sua primeira apresentação em rádio foi na Tamoio, do Rio de Janeiro, em 1944. Depois também cantaria na Rádio Nacional e outras que viriam, mas não sem muita luta e perseverança.
Artista com brilho
próprio, sabe-se que não sofreu, musicalmente, a influência de nenhum
antecessor, mantendo grande originalidade em suas criações. Os títulos de suas músicas evidenciam um
espírito ágil, malicioso e irreverente, lembrando, para nós, que vivemos hoje,
por similaridade, alguns dos deliciosos “achados” de Noel Rosa e Aldir Blanc.
Confiram: “Golpe Errado”, “Pisei
Num Despacho”, “Cabritada Malsucedida”,
“Vou Dar o Serviço”, “Conversa Fiada”, “Chegou Bonitona”, “Polícia no Morro”,
“Falsa Baiana”, “Sem Compromisso”, dentre dezenas de outros.
Na época de Geraldo
Pereira, pobreza não era novidade, mas
os trens e bondes cariocas ensejavam viagens bucólicas pelas paisagens
verdejantes dos subúrbios, ainda não violentados pela criminosa especulação
imobiliária, deflagrada a partir da década de 60.
Estando em São Paulo, em 1954, para trabalhar em shows do IV Centenário da cidade, liderou, junto aos seus músicos, um quebra-quebra na boate Esplanada, reação contra um empresário que os contratou e não queria pagar o combinado.
Em 1980, o compositor
Monarco, “bamba” da Portela, fez uma
bela composição em sua homenagem, decisiva para que a Escola de Samba Unidos do
Jacarezinho vencesse o Grupo II do Carnaval carioca, com o tema “Geraldo Pereira, Glória Eterna do Samba”.
Bons ventos soprariam
para a revalorização de Geraldo Pereira, em 1999, quando a TVE, do Rio, e a TV Cultura, de São Paulo,
exibiram o filme “O Rei do Samba”,
realizado em Juiz de Fora por José Sette, mineiro de Ponte Nova, então
residindo na Manchester Mineira. Feito
com suor, lágrimas e nenhuma grana, em sistema de cooperativa, contou com um
mutirão de cerca de 280 pessoas amigas,
entre técnicos, operários e atores locais. Nele foram
salpicadas 21 pérolas do repertório de Geraldo Pereira.
O episódio de sua morte
até hoje continua envolto em contornos de
incerteza. Após levar um soco de
Madame Satã, figura legendária da Lapa, Geraldo Pereira caiu batendo com a cabeça
na calçada, sendo conduzido desacordado de ambulância para o Hospital dos
Servidores Municipais, onde faleceria uma semana depois. Sua morte prematura
também foi atribuída ao uso imoderado da bebida e sua negligência com a saúde.
Madame Satã, por seu lado, em entrevista ao
jornal “O Pasquim”, em 1971, deu sua versão sobre seu arranca-rabo com Geraldo
Pereira: "Eu entrei no Capela (Bar Capela) e estava sentado tomando um
chope. Ele chegou com uma amante dele, pediu dois chopes e sentou ao meu lado.
Aí tomou uns goles do chope dele e cismou que eu tinha que tomar o chope dele e
ele tinha que tomar o meu. Ele pegou o meu copo e eu disse pra ele: olha, esse
copo é meu. Aí ele achou que aquele copo era dele e não era o meu. Então eu
peguei meu copo e levei para a minha mesa. Aí ele levantou e chamou pra briga.
Disse uma porção de desaforos, uma porção de palavras obscenas, eu não sei nem
dizer essas coisas. Aí eu perdi a paciência, dei um soco nele, ele caiu com a
cabeça no meio-fio e morreu. Mas ele morreu por desleixo do médico, porque foi
para a assistência vivo.”
O
lendário jornalista Okky de Souza, em artigo publicado no “Dicionário Cravo
Albin da Música Popular Brasileira”, ratificou
o nome de Geraldo Pereira como um dos nossos mais importantes
compositores, com esta síntese: "Dois são os motivos que fazem de Geraldo
Pereira um dos maiores sambistas de todos tempos. Primeiro: ele foi o mais
brilhante cultor do samba sincopado. Segundo: em suas letras, atuou como um
atilado cronista do Rio de Janeiro de sua época".
Assim, por questão de justiça
e relevância de sua obra para o acervo da música popular brasileira, celebramos
em GERALDO THEOTÔNIO PEREIRA um criador admirável, detentor de méritos mais que
suficientes para ter estátua em praça
pública e ser objeto de estudos prioritários em nossas Escolas de Música e
Universidades.
Nelson Bravo – Juiz de Fora (MG)
Explique o que era uma pastora na época, pois as gerações de
agora não sabem, visto que trata-se de uma coisa da era do rádio.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluir'Pastora', quando relativamente ao samba e ao carnaval, como está no texto, é como se chama a mulher que participa, cantando e dançando, nos desfiles das escolas de samba.
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