segunda-feira, 31 de agosto de 2020

GERALDO PEREIRA SAMBISTA COM UM PÉ NO FUTURO: ARTIGO DE NELSON BRAVO

 GERALDO PEREIRA, SAMBISTA COM UM PÉ NO FUTURO



Ele foi um dos precursores da Bossa Nova,  evidência  reconhecida até por João Gilberto, o “papa” desse movimento, ao lado de Tom Jobim e Vinicius de Moraes e  primeiro artista a  regravar seus sambas “Falsa Baiana” e “Bolinha de Papel”, no início da década de 60.  Com isso,  resgatou  do nosso mar de esquecimento, como um escafandrista de plantão, esse compositor fundamental, até ali   deixado à margem pelas rádios e gravadoras como um barco à deriva, embora abarrotado de sublimes tesouros musicais. 

Só a partir de então suas canções passaram a ser revisitadas e  gravadas pelos maiores  astros da nossa música popular, dentre eles  Elis Regina, Chico Buarque, João Bosco, Gal Costa, Noite Ilustrada, Paulinho da Viola, João Nogueira,  Jair Rodrigues, Zizi Possi e tantos outros.    

Geraldo Theodoro Pereira nasceu em Juiz de Fora (MG), em 23 de abril de 1918.  Ignora-se quem seria seu pai.  Sua mãe,  filha de antigos escravos libertos, o abandonou nos primeiros anos de vida.   Foi deixado na casa de parentes para,  mais tarde, só com o curso primário, seguir para o Rio de Janeiro, ao lado do seu irmão mais velho, Mané Araújo, que lá seguiria para tentar a sorte.  Antigos moradores da Mangueira como os sambistas Cartola e Carlos Cachaça lembravam de que o menino Geraldo Pereira, com cerca de 11 a 12 anos,  lá teria chegado com o irmão, entre os anos de 1929  a 1931.



Ali, mais tarde, seria  assíduo frequentador da casa de um tal Alfredo Português, onde  “batia ponto regularmente, ao lado dos sambistas acima, além de Nelson Cavaquinho e Nelson Sargento.  Sabe-se que Cartola foi seu mestre de violão, assim como Aluísio Dias.     

Casou-se em 1938 com Eulíria Salustiana, a Nininha, tendo um filho com ela. No entanto, diziam que seu grande amor foi a mulata Isabel Mendes da Silva, que trabalhava como pastora[1]  em programas de rádio.  Viveu com ela até morrer, em 1955,  e dedicou-lhe belas canções, como “Escurinha”.

Trabalhou como soprador de vidro em uma fábrica, e foi operário de uma cerâmica, onde sofreu  grave acidente, esmagando a mão.  Com a modesta grana recebida de indenização, comprou um violão e começou a fazer a vida.  Já ligado no samba, trabalharia durante o dia como motorista de caminhão coletor de lixo da Prefeitura, e à noite,  apresentava-se  em rádios e boates, numa época em que compositor ainda não cantava profissionalmente.  

Alto, magro e franzino de corpo, gostava de trajar terno branco e tinha muitas superstições.   Adorava viver cercado de belas mulatas, assumindo, assim, de forma ostensiva, seu “status” de artista popular de rádio e shows.  Era negro, mas tinha olhos amendoados, claros e quase verdes, segundo seus biógrafos.  Procurava disfarçar o cabelo carapinha cortando-o rente.  Sabe-se que não era de briga, mas não gostava de levar desaforo para casa.  Conforme seus contemporâneos, sua ruína teria sido provocada pela inabilidade em conciliar sua vida amorosa e a bebida.  Teve vários problemas de saúde em sua breve existência, e isso muito o prejudicou.


 

Compôs seu primeiro samba, “Farei Tudo”, em 1938, infelizmente barrado pela censura. Isso fez com que   o  primeiro artista  a gravar uma composição de sua lavra fosse Roberto Piva, mas só no ano seguinte, com “Se Você Sair Chorando”.  Antes de gravá-la, Piva a levaria para Pixinguinha orquestrar, quando este manifestou o desejo de conhecer seu autor. E disse mais: “Olha, seu Roberto, só existem sete notas musicais, por isso é difícil inventar alguma novidade em termos de combinação de notas sonoras.  Mas essa melodia é realmente original”.

“Acertei no Milhar”, parceria com Wilson Batista, na voz de Moreira da Silva, em 1940, foi seu primeiro sucesso.  Nesse mesmo ano, muitos cantores haviam  lançado suas canções, dentre eles seu grande amigo   Ciro Monteiro – gravou doze, só dele, um recorde! -, Aracy de Almeida,  Isaurinha Garcia, Dircinha Batista, o Conjunto Quatro Ases e Um Coringa, Odete Amaral, Jorge Veiga, Déo e Alcides Gerardi.

Apesar de gravada em 1944, inicialmente pelos Anjos do Inferno,  Bolinha de Papel” só alcançaria sucesso de público quando gravada por João Gilberto.

 


As canções “Mais Um Milagre” e “Bonde Piedade”,  de sua autoria, gravadas em 1945, foram suas primeiras experiências como intérprete.  Passados cinco anos, voltou a fazê-lo, agora com “Pedro do Pedregulho”.  Ao todo,  gravou com sua voz perto de trinta músicas.  Sintomaticamente, em 1954, lançou “Eu Vou Partir”, como que pressagiando seu fim poucos meses mais tarde.

 

Para João Gilberto, que muitos estudiosos consideram o mais perfeito intérprete da história da música, no mundo, Geraldo Pereira foi também uma espécie de descoberta.  Dele, João declarou que “era aquele malandro alto, forte.  Mas não era daqueles tipos agressivos – “Que é que há?  Como é que é?” Era um malandro bem suave, falava manso, tinha aquela ginga certa de quem não tem pressa e sabe das coisas.  Mas nem por isso ele perdia o velho estilo dos valentões da Lapa”. 

 


 Quando ainda morava numa pensão e dividia um quarto com o cantor e compositor Luiz Carlos Paraná, nos anos 50, no Rio, João Gilberto nos deixou este despojado depoimento sobre um curioso episódio vivido com Geraldo Pereira: “Eu ainda era do conjunto Os Garotos da Lua, nem pensava em cantar sozinho, quando um dia ele me convidou para  sentar com ele num bar daqueles, lá na rua da Lapa.  Enquanto a gente tava tomando umas coisas no bar, passaram uns sujeitos e me estranharam, ficaram olhando da porta.  E ele: ‘Que é que vocês tão olhando?  Isso aqui (era eu) é gente minha!’  Os caras foram embora. O samba dele era leve e cheio de divisões rítmicas, isto sempre me chamou a atenção.  Ele não tinha consciência disso, mas foi um inovador na música popular brasileira na década de 1940”.

 


Maduro e já como artista, chegou a fazer shows com suas  pastoras em boates do Rio e São Paulo e até no Cassino da Urca.  Reconhecido nas  camadas populares, participou, em 1951, com o samba “Ela”, do primeiro LP (Long PlayIng) produzido no Brasil, até com figuras do rádio e do  cinema  que não eram cantores – o ator e apresentador  César Ladeira e o cômico do cinema Oscarito, por exemplo.   Essa novidade, espetacular para o mundo da música, fora lançada em 1948 pela Colúmbia Records, em solenidade no Hotel Waldorf Astoria, de New York, com o disco “The Voice of Frank Sinatra”.

Depois que João Gilberto relançou “Falsa Baiana” e “Bolinha de Papel”, revelando o mapa da mina, tornou-se impossível ignorar a importância e influência de Geraldo Pereira em nosso cenário musical.  A partir dali, uma  avalanche de grandes intérpretes e compositores iria matar a sede nessa fonte.  Paulinho da Viola, por exemplo, que já o estudava e considerava um dos maiores compositores de todos os tempos, fez uma excelente releitura  de “Você Está Sumindo”, de Geraldo Pereira e Jorge de Castro, em 1971, além de cantar “Falsa Baiana”.  Também João Nogueira, no início dos anos 80,  gravou um estupendo LP, homenagem a três gênios do samba que habitavam seu coração: Noel Rosa, Geraldo Pereira e Wilson Batista.  Nele incluiu do sambista mineiro  Bolinha de Papel”, “Você está Sumindo” e “Pedro do Pedregulho”.  Em 1990, foi a  vez de Chico Buarque rasgar seda:  gravou dele e Nelson Trigueiro,  Sem Compromisso”, no seu LP “Chico Buarque ao Vivo”, registrado  na prestigiosa casa de shows Zenith, no Parc de La Villette, em Paris. 

Frequentador habitual do Café Nice, A Capela e o Elite Clube, no Rio, como ator faria ligeiras pontas em alguns filmes da época.  Em 1942,  apareceu no célebre documentário de Orson Welles  It’s All True” (“É Tudo Verdade”), no Rio, nunca  finalizado.  Depois, em 1944, participaria do filme musical “Berlim na Batucada”, dirigido por Luiz de Barros.  Em 1951, com o mesmo diretor, atuaria na comédia  O Rei do Samba”, título homônimo ao do filme de 1999, em sua homenagem, que seria  realizado em Juiz de Fora por nosso amigo José  Sette.  No teatro, foi coadjuvante da peça “Anjo Negro”, de Nelson Rodrigues, que ficou em cartaz em 1948, no Rio, e em 1949, em São Paulo. 


Surpreendente era sua postura antimachista, para a época,   externada em várias de suas letras, quando a mulher ainda não podia sequer votar ou trabalhar fora sem autorização do marido.  Ele iniciou sua incursão pelo inseguro mundo da música como compositor no período áureo do samba e já   chegou inovando, embora ainda não tivesse consciência disso.   Lançou o  que se convencionou chamar samba sincopado ou teleco-teco, ritmo ainda desconhecido e que acabaria influenciando todos os futuros músicos da Bossa Nova.   Estes seriam formados por pequenos grupos de jovens da Zona Sul do Rio, que  passariam a reunir-se despretensiosamente para tocar violão – inclusive João Gilberto -- no apartamento da adolescente Nara Leão, em Copacabana, no final dos anos 50, dentre eles Roberto Menescal, Carlos Lyra, Chico Feitosa e Ronaldo Bôscoli.

No livro “Um Certo Geraldo Pereira”, de Alice Duarte Silva, o compositor Cyro de Souza lembra que a batida da Bossa Nova, de João Gilberto, pode ser encontrada nos sambas de Geraldo Pereira, criada por ele duas décadas antes do disco precursor de João Gilberto, “Chega de Saudade”, ser gravado e  que faria a cabeça de todo mundo e mudaria o panorama musical brasileiro de pernas pro ar.

Segundo afirmou o já citado João Nogueira, outro “cobra criada” do nosso melhor samba, Geraldo Pereira “era vara madura que não cai e deixou belos e bons sambas que influenciaram outros segmentos da MPB, cujo melhor exemplo foi a Bossa Nova”.   Sua primeira apresentação em rádio foi na Tamoio, do Rio de Janeiro, em 1944.  Depois também cantaria na Rádio Nacional e outras que viriam, mas não sem muita luta e perseverança.   

 


Artista com brilho próprio, sabe-se que não sofreu, musicalmente, a influência de nenhum antecessor, mantendo grande originalidade em suas criações.  Os títulos de suas músicas evidenciam um espírito ágil, malicioso e irreverente, lembrando, para nós, que vivemos hoje, por similaridade, alguns dos deliciosos “achados de Noel Rosa e Aldir Blanc.  Confiram: “Golpe Errado”, “Pisei Num Despacho”,  “Cabritada Malsucedida”, “Vou Dar o Serviço”, “Conversa Fiada”, “Chegou Bonitona”, “Polícia no Morro”, “Falsa Baiana”, “Sem Compromisso”, dentre dezenas de outros.

Na época de Geraldo Pereira,  pobreza não era novidade, mas os trens e bondes cariocas ensejavam viagens bucólicas pelas paisagens verdejantes dos subúrbios, ainda não violentados pela criminosa especulação imobiliária, deflagrada a partir da década de 60.

Estando em São Paulo, em 1954, para trabalhar em shows do IV Centenário da cidade, liderou, junto aos seus músicos, um quebra-quebra na boate Esplanada, reação contra um empresário  que os contratou e não queria pagar o combinado.              

 


Em 1980, o compositor Monarco, “bamba” da Portela,  fez uma bela composição em sua homenagem, decisiva para que a Escola de Samba Unidos do Jacarezinho vencesse o Grupo II do Carnaval carioca, com o tema “Geraldo Pereira, Glória Eterna do Samba”.                                            

Bons ventos soprariam para a revalorização de Geraldo Pereira, em 1999, quando a  TVE, do Rio, e a TV Cultura, de São Paulo, exibiram o filme “O Rei do Samba”, realizado em Juiz de Fora por José Sette, mineiro de Ponte Nova, então residindo na Manchester Mineira.   Feito com suor, lágrimas e nenhuma grana, em sistema de cooperativa, contou com um mutirão de cerca de 280 pessoas amigas,  entre técnicos, operários e atores locais.  Nele foram  salpicadas 21 pérolas do repertório de Geraldo Pereira. 

O episódio de sua morte até hoje continua envolto em contornos de  incerteza.   Após levar um soco de Madame Satã, figura legendária da Lapa, Geraldo Pereira caiu batendo com a cabeça na calçada, sendo conduzido desacordado de ambulância para o Hospital dos Servidores Municipais, onde faleceria uma semana depois. Sua morte prematura também foi atribuída ao uso imoderado da bebida e sua negligência com a saúde.    

Madame Satã, por seu lado, em entrevista ao jornal “O Pasquim”, em 1971, deu sua versão sobre seu arranca-rabo com Geraldo Pereira: "Eu entrei no Capela (Bar Capela) e estava sentado tomando um chope. Ele chegou com uma amante dele, pediu dois chopes e sentou ao meu lado. Aí tomou uns goles do chope dele e cismou que eu tinha que tomar o chope dele e ele tinha que tomar o meu. Ele pegou o meu copo e eu disse pra ele: olha, esse copo é meu. Aí ele achou que aquele copo era dele e não era o meu. Então eu peguei meu copo e levei para a minha mesa. Aí ele levantou e chamou pra briga. Disse uma porção de desaforos, uma porção de palavras obscenas, eu não sei nem dizer essas coisas. Aí eu perdi a paciência, dei um soco nele, ele caiu com a cabeça no meio-fio e morreu. Mas ele morreu por desleixo do médico, porque foi para a assistência vivo.”

O lendário jornalista Okky de Souza, em artigo publicado no “Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira”, ratificou  o nome de Geraldo Pereira como um dos nossos mais importantes compositores, com esta síntese: "Dois são os motivos que fazem de Geraldo Pereira um dos maiores sambistas de todos tempos. Primeiro: ele foi o mais brilhante cultor do samba sincopado. Segundo: em suas letras, atuou como um atilado cronista do Rio de Janeiro de sua época".

Assim, por questão de justiça e relevância de sua obra para o acervo da música popular brasileira, celebramos em GERALDO THEOTÔNIO PEREIRA um criador admirável, detentor de méritos mais que suficientes para  ter estátua em praça pública e ser objeto de estudos prioritários em nossas Escolas de Música e Universidades.

Nelson Bravo – Juiz de Fora (MG)

 


Explique o que era uma pastora na época, pois as gerações de agora não sabem, visto que trata-se de uma coisa da era do rádio.


2 comentários:

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    1. 'Pastora', quando relativamente ao samba e ao carnaval, como está no texto, é como se chama a mulher que participa, cantando e dançando, nos desfiles das escolas de samba.

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