Transparentes, vazados,
fluidos, moventes
Vivenciar um edifício
sem portas, circulando à época de sua formação universitária, pode representar
um ato transgressor, mesmo que não aparente. Como importante testemunho
pessoal, acredito que a frequência cotidiana no prédio da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da USP (Universidade de São Paulo), de autoria de
Vilanova Artigas com Carlos Cascaldi, de 1961, reserve em minha biografia um
lugar especial, com ressonâncias futuras e espacialidades, naqueles anos,
decisivas na percepção de mundo.
Feita essa digressão
inicial, é com felicidade que posso encarar a empreitada de ajudar a artista
Patricia Lopes a povoar de gestos poéticos e materialidades frágeis e, ao mesmo
tempo, potentes o Museu de Arte de Londrina, sua cidade natal. A instituição
agora utiliza a antiga Rodoviária local, projeto de Artigas (1915-1985) datado
de 1950 e indubitavelmente um patrimônio da modernidade arquitetônica nacional.
Para a individual Momentos,
Lopes tem como guia a transparência. É mais evidente na instalação em que ela
dispõe uma espécie de cortina com figuras gravadas no plástico que remetem a
tempo _este um título de outra série também presente na exposição. É como se a
artista convidasse o público a um passeio sensorial que evoca uma corporeidade
frágil, colocando o (ex) observador em meio a camadas de uma luz ‘matérica’ que
termina por duplicar a pele de vidro tão habilmente construída por Artigas para
destacar as relações entre o interno e o externo. Também se faz curioso que os
relógios agora gravados na superfície transparente criem um eco ruidoso a um
dos fortes conjuntos de outro museu próximo, cuja parede repleta de relógios de
variadas épocas tornem ainda mais forte a sensação do fim de um tempo
‘ferroviário’ (mesmo que estejamos numa outra era de confusas definições).
E ainda que as
esquadrias, fachadas, revestimentos e outros elementos arquitetônicos
necessitem de urgente restauro, Lopes mantém a essência do projeto de Artigas,
forjando novos elos e sem abdicar da própria poética e autoria. “Esse sentido
de transparência é perseguido em cada detalhe pelo desenho arquitetônico, seja
pelo sentido aéreo da cobertura em abóbadas, seja pelo pano de vidro que veda o
interior do trapézio. Este, por sua vez, reenfatiza o sentido de fluência
espacial pelo seccionamento do bloco em dois (passagens e restaurante no maior
e juizado no menor), abrindo em posição intermediária uma cavidade vazia de
dupla altura”1, avalia João MasaoKamita sobre a edificação do
arquiteto paranaense.
Outro dado interessante é como a série África,
exibida anteriormente em Londrina, se reconfigura no novo recorte. Se o
conjunto já se situava numa saudável mescla de linguagens, entre a fotografia,
a colagem, a pintura e o tridimensional, por exemplo, agora ganha a
multiplicidade da gravura. Fica o que eu já registrara: quando a artista
prescinde dessa sua anterior marca gráfica ou a utiliza de maneira a retirar
seu significado inicial (o serial-visual é mais importante que o dado da
comunicação e do ‘entender’), parece gerar peças mais desenvolvidas, maduras.
E, tanto em África como nas novas séries Tempo
e Vitória, é relevante apontar que as imagens ‘reais’, coletadas e
produzidas por Lopes, são retrabalhadas de diferentes formas e procedimentos
por meio de ferramentas atuais de produção, a ressaltar novas materialidades e
outros corpos de obra _ em especial texturas, sobreposições, paletas. Motivos
evitados na gramática contemporânea _ flores, por exemplo _ deixam a condição
decorativa e, desconstruídos e renovados, surgem em novos arranjos
plástico-visuais. Assim, num lócus tão especial não apenas para a cidade
paranaense, mas para a modernidade nacional, a obra em desenvolvimento de
Patricia Lopes dá a sua contribuição em variados âmbitos para dias mais
alvissareiros num espaço tão prenhe de significados.
Mario Gioia, julho de
2015
Graduado pela ECA-USP (Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo), faz parte do
grupo de críticos do Paço das Artes desde 2011,
instituição na qual fez o acompanhamento crítico de Luz Vermelha
(2015), de Fabio Flaks, Black Market (2012), de Paulo Almeida,
e A Riscar (2011), de Daniela Seixas. É crítico convidado
desde 2014 do Programa de Exposições do CCSP (Centro
Cultural São Paulo) e fez, na mesma instituição, parte do
grupo de críticos do Programa de Fotografia 2012/2013.
No
centro, produziu material crítico sobre os artistas Rodrigo Sassi, Renata De
Bonis, RomyPocztaruk, Tatiana Cavinato, Marcelo Tinoco, Beatriz Toledo e Breno
Rotatori. Coordena pelo quinto ano o projeto Zip'Up, na Zipper
Galeria, destinado à exibição de novos artistas e projetos inéditos de curadoria.
Na temporada 2014, assinou a curadoria de Decifrações (Espaço
Ecco, Brasília), coletiva com Artur Barrio, Daniel Senise, Daniel Escobar, João
Castilho, Luciana Paiva e Virgílio Neto, entre outros.
1. KAMITA, João Masao. Vilanova Artigas. São Paulo, Cosac Naify, 2000, p. 17