FRANS
KRAJCBERG, UM GRITO DE REVOLTA EM DEFESA DA NATUREZA
Pintor, escultor,
fotógrafo ecologista e engenheiro, Frans Krajcberg é um polonês nascido em 1921
e que aqui chegou em 1948. Hoje
notabilizado internacionalmente por ser um dos maiores artistas do mundo
ligados à causa ecológica, realizou inúmeras viagens pelo interior do Brasil,
sobretudo ao Mato Grosso e à Amazônia, recolhendo material da natureza,
fotografando e documentando os desmatamentos aqui perpetrados.
Sua paixão pelo Brasil e sua
luta solitária pela defesa da natureza transcende nossa irresponsabilidade
coletiva, traduzida pelo descaso e desamor pelo nosso país, o que o legitima
como um homem mais brasileiro do que nós.
Feroz militante em defesa
do planeta, suas armas de denúncia utilizadas para mostrar ao mundo a
destruição criminosa das florestas e da fauna brasileira são feitas com
trabalho duro, arte e sensibilidade, através de suas belíssimas exposições, em
todas as partes do mundo. Utiliza como
matéria-prima cipós, árvores e troncos calcinados, recolhidos das devastações
das nossas florestas, que ele transforma em obras incríveis, após trabalhá-las
artisticamente. Além disso, vem
publicando, com enorme repercussão internacional, livros de fotografias dos
incêndios aqui praticados, recurso estético explícito para apontar nossa
ignorância e descaso com relação à exuberância natural do país.
Homem simples e direto,
naturalizado brasileiro desde 1958, vencedor das mais importantes Bienais de
Arte do mundo, detesta viver na cidade, embora hoje tenha um apartamento e
ateliê na Urca (Rio) – onde também reside nosso amigo Ricardo Cravo Albin – e
em Montparnasse (Paris), passa a maior parte do tempo em Nova Viçosa, no Sul da
Bahia, num resto de Mata Atlântica, em uma casa ecológica construída na copa de
um majestoso pequi, numa área de reserva ecológica de apenas l,2 km², onde
mantém seu ateliê desde 1972.
Ainda jovem, Krajcberg,
concluídos seus estudos na Universidade de Leningrado (Rússia), deixa-os para
integrar o exército polonês durante a Segunda Guerra Mundial, e depois muda-se
para a Alemanha, onde entra para a Escola de Belas Artes de Stuttgart. Tinha 17 anos quando seus pais e irmãos foram
dizimados nos campos de concentração nazistas e ele, pela discriminação que já
sofrera por ser judeu, promete nunca mais voltar à Polônia, sendo sua maior
mágoa não ter ao menos um retrato de sua mãe, para lembrar-lhe os traços, já que impossibilitado de refazê-los
mentalmente, em virtude de uma bomba ter explodido muito próxima à sua cabeça,
durante a guerra, o que afetaria para sempre algumas partes da sua memória.
Da Alemanha, com uma
carta de recomendação de seu professor e amigo Willi Baumeister, vai para
Paris, onde é recebido pelo pintor Fernand Leger. Fica apenas seis meses na cidade,
onde o também pintor e amigo russo Marc Chagall, judeu como ele, compra uma
passagem para ajudá-lo a embarcar para o Brasil, em 1948, com destino ao Rio.
Sem dinheiro ou
conhecimento, por aqui, chega a se abrigar na rua, quando é generosamente amparado
pelo escultor Bruno Giórgio, que cede seu ateliê, que ele usa para dormir. Fica poucos dias no Rio, seguindo, depois,
para São Paulo, onde, ainda desprovido de recursos, dorme na sede do Grupo Santa
Helena, quando conhece o milionário Francisco Matarazzo, que o indica para
trabalhar como operário na construção do Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Também começa a trabalhar
na OSIARTE, oficina de arte onde pintava azulejos para os painéis que Cândido
Portinari desenhava para decorar o prédio do Ministério da Educação, no Rio
(Palácio Gustavo Capanema). É quando
estabelece relações afetivas e artísticas por toda a vida com o pintor
ítalo-brasileiro Alfredo Volpi, pessoa extremamente doce e generosa.
Ajuda na montagem da 1ª
Bienal de São Paulo e participa, nesse ano, com duas telas, do Primeiro Salão
de Arte Moderna de São Paulo. No ano
seguinte, por indicação do pintor Lasar Segall, outro sofrido imigrante judeu e
pintor russo que aqui se estabelecera, foi trabalhar como engenheiro-desenhista
nas Indústrias Klabin, no Paraná, ligada à produção de papéis, uma experiência
frustrante.
Em 1956, decide ir morar
no Rio com o escultor Franz Weissman, mas como havia pouca ventilação no
apartamento onde ele pintava, acabou se intoxicando pelas resinas. Após receber o prêmio na Bienal de Veneza, em
1964, muda os materiais de trabalho, e começa a fazer gravuras e esculturas com
madeira, quando se instala em Cata Branca, interior de Minas Gerais.
Krajcberg viveu, de 1958
a 1964, entre as cidades de Paris, Ibiza e Rio de Janeiro, onde surgem seus
primeiros trabalhos, resultado de seu contato direto com a Natureza. Antes. fazia pintura abstrata, como sua
grande amiga e também polonesa Fayga Ostrower.
No começo, disse, “pegava uma coisa morta, uma madeira queimada, e dava
outra vida, fazendo uma escultura ou uma pintura. Em 1975, fiz uma exposição no
Centre Georges Pompidou, em Paris, e durante o período da Mostra, encontrava o
público para falar da natureza no Brasil. Cheguei à conclusão de que não devia
apenas trabalhar com a natureza, mas também defendê-la com minha revolta. Se eu
começasse a gritar na rua, seria internado como louco. O único meio de
transmitir minha revolta era através do meu trabalho. Esse é o meu trabalho,
minha luta, meu pensamento. Nunca vou me esquecer de quando fui a Rio Branco,
no Acre. Chorei feito criança ao ver a destruição. E até hoje, quando viajo do
Sul da Bahia para o Espírito Santo e vejo uma árvore que deixaram em pé, paro o
carro, desço e abraço. Ela é linda e sobreviveu”, disse o artista.
Em Cata Branca, região do
Pico Itabirito, Minas Gerais, agora devastado pelas mineradoras, que ele já
denunciava quando lá vivia, e onde hoje está proibido até de entrar e
fotografar (!), Krajcberg fez suas primeiras esculturas em pedras e madeiras
abandonadas pela mineração de ferro, nessa área que até hoje lhe desperta
enorme paixão pela sua beleza e diversidade da flora e fauna.
“Ela (a natureza) é minha
família, minha cultura. Depois da guerra e de tudo que vi nela, me pergunto se
vale a pena continuar. Quando tudo acabou, passei a detestar o homem. Foi
quando encontrei a natureza. Descobri uma vida que me dá tranquilidade, um
outro lado da existência que não questiona minha nacionalidade ou minha
religião. Até hoje é uma luta viver entre os homens. Mas no momento em que
descobri o outro lado, passei a observar que a natureza é passiva, linda e que
não machuca. Me fascina”, declarou.
Curiosamente, de sua
troca de correspondência com a presidiária Socorro Nobre, da Bahia, hoje não
mais reclusa, o cineasta Walter Salles, que já fizera com ele um comovente
documentário sobre essa amizade, também nele se inspiraria para escrever o
roteiro do filme Central do Brasil.
E no ano 2000, convidado
para expor na Feira Mundial de Hannover, na Alemanha, pela celebração dos 500
anos do Descobrimento do Brasil, Krajcberg acabaria sendo “censurado“ pelo
Itamaraty. Foi quando nossa diplomacia da época, com um zelo “de
fachada”, às vésperas da abertura do evento, impediu a apresentação da obra do
artista, mostrando a destruição das nossas matas, fato entristecedor, mas
solenemente ignorado pela mídia brasileira. “Eu não entendo o Brasil, acho que
sou uma ameaça ao país”, desabafou desconsolado.
Aliás,
sua crítica veemente também chamuscaria a nefasta e predatória bancada
ruralista da UDR, junto ao Congresso Nacional, pois a seu ver, a destruição das
nossas florestas não é feita pelo povo, mas sim pelos fazendeiros, possuidores,
por vezes, de áreas do tamanho da Bélgica ou da Arábia Saudita. Igualmente o
artista soltou o verbo para denunciar as mutretas
feitas pelos latifundiários, para driblar a fiscalização governamental,
chegando ao cúmulo de (pasmem!) levar até vacas alçadas em helicópteros, de uma
para outra área, para simular ocupação da terra, fato testemunhado pelo próprio
Krajcberg, na primeira vez em que foi à Amazônia. Era um recurso utilizado por
alguns fazendeiros para legitimar a ocupação de terras e cercá-las, muitas
vezes com a conivência dos nossos próprios órgãos governamentais encarregados
de reprimi-los. Em sua indignação, nunca perdoou o INCRA ou o Banco do Brasil
que, a seu ver, facilitava transações de terras e concedia generosos
financiamentos a grupos poderosos, com um mínimo de exigência documental.
Avesso
aos avanços tecnológicos – o que muito o aproxima de Carlos Drummond de Andrade
–, Krajcberg sempre teve em casa apenas um modesto computador, para ver suas
fotografias em CD, em processo de restauração.
E seu uso da televisão sempre se restringiu ao noticiário. “No futuro, acho que o homem vai viver num bunker
de onde só sairá para trabalhar e viverá alimentado pela televisão”,
desabafou.
Cremos que hoje ele já
deve ter cedido seu ateliê parisiense para o Musée Montparnasse,
lamentavelmente por ora fechado por questões litigiosas com a Prefeitura de
Paris, uma área verde e florida na avenue du Maine, antigo ateliê do
pintor/escultor russo Marie Vassilieff (1855-1957), no tradicional bairro de
Montparnasse.
Krajcberg sempre teve em
seu acervo particular preciosidades de outros celebrados artistas como Georges
Braque e Marc Chagall. Igualmente,
viajou pelo mundo, expondo na Austrália, Canadá ou Japão, tantas são as
solicitações para as mostras de seus trabalhos.
Paradoxalmente, nosso
sistema burro-crático também já lhe
provocou constrangimentos e até um caso curioso, ainda que por vias obtusas.
Certa vez, ele pediu um carregamento de madeira calcinada de Mato Grosso, para
trabalhá-lo e expô-lo, mas o material demorou
para chegar ao seu ateliê, muito além do tempo previsto. Quando a carga
chegou, ele perguntou ao motorista o motivo do atraso. Para seu espanto, o
caminhoneiro esclareceu que só viajava à noite, pois pelo alto valor que
Krajcberg lhe pagara por uma carga de madeira calcinada, deduziu que a madeira
deveria estar cheia de droga...
Amigo íntimo de artistas
brasileiros, que também conviveram com ele em Paris, como Lygia Clark e Antônio
Bandeira, o ecologista que não suporta a vida urbana, também vê com inquietude
as grandes megalópoles do mundo, achando que São Paulo, por exemplo, é uma
cidade impossível de se viver. Paris ele ainda suporta dois meses por ano, pois
lá a efervescência cultural é enorme, o que o motiva a voltar ao Brasil para
criar.
Certo de que o homem só
sabe que vive com a natureza quando acontece um desastre ambiental – tsunamis,
terremotos, inundações –, pois “quando isso não ocorre, ele se julga superior,
pensa que a religião fará tudo cair do céu”, afirmou. Mesmo assim, Krajcberg
não abdica de sua luta solitária.
Apontava, por exemplo, a
irresponsabilidade dos que queriam o desvio do rio São Francisco, mostrando que
experiência similar fora feita no Cazaquistão, para dar água a uma área seca,
com resultados catastróficos, fato denunciado por Mikail Gorbatchev em 1991, no
Congresso Internacional de Ecologia de Moscou. Sobre o assunto, o artista
declarou: “O que aconteceu lá foi que desviaram o rio e perceberam que cada vez
mais continuou faltando água. Chegou a um ponto que voltaram novamente o curso
para o rio e ele não aceitou. Hoje, há apenas pedras, sem rio nem água. Isso me
marcou muito. O brasileiro não conhece o Brasil, nem a própria região conhecem,
muito menos esse país que é enorme, riquíssimo, com uma pobreza que machuca
qualquer pessoa. Eu não compreendo
isso.”
Longe de ser um
narcisista estéril, Krajcberg é um artista íntegro e humilde na sua militância
impregnada de consciência coletiva, voltada para a preservação da vida, pois
percebeu há muito tempo que o aquecimento global é uma realidade que só pode
conduzir-nos a um desfecho trágico, em poucas décadas, se continuarmos tão
omissos, inclusive ao não cobrarmos um posicionamento efetivo dos nossos homens
públicos sobre questão tão alarmante. Isso se constata, por exemplo, pelas
centenas de milhares de queimadas que continuam ocorrendo por todo o país, para
aumento da área do cultivo de soja e de pastagens, com o consequente
desaparecimento de nascentes de rios, que já nos premia com as maiores secas
dos últimos cinquenta anos, como constatado recentemente nos reservatórios da
capital paulista.
Esta singela matéria é
uma homenagem a esse homem excepcional, capaz de nos mostrar com sua luta e
arte como deveríamos amar nosso país, se tivéssemos um mínimo de consciência
sobre essa dádiva que recebemos de Deus e não sabemos preservar.
Nelson Bravo – Juiz de
Fora