segunda-feira, 11 de maio de 2020

BRASIL PERDE SÉRGIO SANT'ANA, MESTRE DO CONTO


No país do conto, desbravado por Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, o ambiente urbano viu outro escritor do mesmo calibre consolidar a obra mais sensual que a literatura brasileira já teve notícia. Sérgio Sant'Anna morreu neste domingo, 10, vítima da covid-19.

Sérgio Sant'Anna foi talvez o pós-modernista brasileiro mais importante da nossa literatura, unindo sabedoria com um profundo interesse nas letras, ao mesmo tempo em que nutria um ceticismo sobre qualquer papel idealizado da literatura na nossa sociedade. Essa visão influenciou mais de uma geração de escritores. Ele estava internado no Hospital Quinta D'Or, na zona norte do Rio, há uma semana.

Seus narradores, seguindo a coerência, têm plena consciência da própria condição de narrar, estabelecendo assim desde o primeiro plano narrativo uma metalinguagem que coloca em jogo sempre as representações da realidade, e não a realidade em si, atribuindo sofisticação à sua literatura. 

Um dos exemplos dessa constatação é Um Crime Delicado (1997, vencedor do Jabuti de 98), romance em formato de desabafo, escrito por um crítico de teatro, encenado como peça, trabalhado como crítica. Antonio Martins é um crítico que se envolve em um processo criminal após o seu envolvimento com Ines, uma mulher manca que causa nele uma profunda impressão. O seu desabafo, que é então a narrativa, é a sua versão dos fatos. Ao colocar o narrador no papel do crítico, Sant'Anna cria um romance em que o crítico, no lugar de avaliar, é avaliado, gerando um curto circuito de alta voltagem narrativa.

Suas obras foram traduzidas para alemão, italiano, francês, espanhol e tcheco, e ele venceu, entre uma lista enorme de outros prêmios, quatro vezes o Jabuti (que ele dizia "que todo mundo já ganhou"), três vezes o APCA e o prêmio da Biblioteca Nacional. Diversos de seus trabalhos foram adaptados para o cinema e para o teatro. 

Sant'Anna começou na literatura em 1967, realizando enfim o sonho de escrever. Inscreveu um conto num concurso para alunos da Faculdade de Direito da UFMG, onde estudava, e ficou em segundo lugar, recebendo elogios da comissão julgadora, liderada por Murilo Rubião (o primeiro lugar ficou com Humberto Werneck, seu amigo e primo em segundo grau). Ele passou a publicar na revista Estória, editada por Luiz Gonzaga Vieira, e também no Suplemento Literário de Minas Gerais, conduzido pelo próprio Rubião. 

Começou em livro com os contos de Sobrevivente, em 1969 (nascido no contexto da ditadura militar, ferida histórica que seus livros nunca perderam de vista, sem, porém, nenhuma derivação moralizante), que ele mais tarde renegou. Ao longo das décadas, dezenas de títulos aclamados ajudaram a consolidar sua obra no panteão da literatura brasileira, como O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro (1983), A Tragédia Brasileira (1984), O Monstro (1994), Voo da Madrugada (2003), O Livro de Praga (2011) e Anjo Noturno (2017), seu último livro publicado até agora.

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