Seixos
Invenção do branco
“...all this had to be imagined
as an inevitable knowledge.”
Wallace Stevens
O tanque é o avesso da casa.
A rebarba.
A ferrugem tomando conta da boca.
O tanque é a parenta decaída,
que machuca os olhos das visitas
com suas carnes rachadas.
O tanque é onde se lava o coador
e o pó de café de seguidas manhãs
desenha uma poça de água preta.
Uma arraia-miúda,
ervas e craca e limo,
flora sem -vergonha,
infiltra-se em suas paredes.
À beira do poço,
alguém imaginou copos-de-leite.
Bebendo a umidade,
em verde e branco brotaram.
Reinventados pela distância,
erguem-se vívidos,
mais brancos que o branco,
artifício de vidro.
Recém-nascidos.
Só porque eles existem,
o tanque e seu corpo saloio
foram salvos do esquecimento.
Rumor das águas
Se o Rumor é também um deus,
nas águas dessas grotas é que ele mora.
Nasce, reverbera e estertora.
Rompe estreitos de rocha. Lambe seixos.
Espumas saltam-lhe dos cantos da boca.
Da fricção das águas, surge uma ópera.
Glossolalia divina. Protomúsica.
Que soava desde o princípio
antes da entrada do homem na paisagem.
Recomendações
Ao cavaleiro desencarnado,
com sua égua de gás hélio,
recomendo ouro, prata e chumbo.
No meio do seu caminho,
mero pedregulho transmuta-se
em rocha, penedo, penhasco.
Mínima ponta de agulha fura
sua armadura hiperbovarista.
Nem figos envenenados
sustentam-lhe a fome.
Tudo o que toca some. Evapora.
Ponha os pés no chão,
para que o minério de ferro
neles grude e forme um casco.
Ninguém vai ouvir falar do seu nome.
Escuta o resumo de sua vida:
um espasmo, um sopro que não soa
além da grade de sua casa.
José
“ Ah, Anhangá me fez sonhar
com a terra que perdi.”
( Em O Canto do Pajé, de Heitor Villa-Lobos
e C. Paula Barros)
Grito espremido.
Seixo perfeito,
com sono no leito do rio.
Dito não dito que roça
um céu de ametista.
Onde o fundo
deste poço de granito?
Onde o infinito,
a luz do sol do Egito?
Tampa de pedra
sobre carnes de René.
Olhe ainda que cego,
o reino que já foi teu.
Seixos/Guijarros é uma seleção de poemas de vários livros publicada pela Orpheu Digital na coleção Poetas de Orpheu, dirigida por Angela Pieruccini Boff. O poema Fidelidade foi traduzdo por Reynaldo Jiménez para a revista tsé-tsé 7/8.
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