Há personalidades que a gente admira sem ter pertencido à sua época. Admiro e sou fã incondicional de Bach, Mozart, Beethoven, Carlos Gomes, Padre Maurício e Villa Lobos. De Pixinguinha, Noel e Cartola. De Jobim, Roberto Carlos, Pelé, Gandhi e Cristo.
Se bem que alguns são nossos contemporâneos, mas suas carreiras se deram quando nem éramos nascidos. E, no entanto estamos ali, conectados pela fé inabalável na força da criação e do amor.
Quando o primeiro disco dos pára-lamas do Sucesso surgiu, em 1983, eu era um garoto e curti aquele som meio ska, meio rock, que um guitarrista de óculos, magro e dado a questionar as mazelas políticas do Brasil, fazia junto com mais 2 rapazes brancos. O disco se chamava Cinema Mudo e era ( é ) meio bobo, mas marcava o início do que viria a ser conhecido como o rock nacional dos anos 80.
O tal cara é Herbert Vianna, que lançaria em 1984, O Passo do Lui, em que a maioria das composições eram suas e que conquistaria a maturidade ( ele e o grupo) no conceitual Selvagem. Lembro-me que ouvi o Selvagem pela primeira vez na casa de um amigo do Senai ( éramos um grupo de uns 8 ou 10 garotos, a se reunir todo sábado à noite para cultuar e analisar os lançamentos e os nomes que surgiam no cenário da música em todos os gêneros). Ali, na casa do William, ouvimos os primeiros Legião, Titãs, Lobão, Kid Abelha, Plebe Rude, Léo Jaime, RPM e claro Os pára-lamas.
Este disco de 1986, intrigava já na faixa de abertura ( Alagados ) que trazia a participação de Gilberto Gil, também parceiro do grupo em "A novidade". Traz também a primeira colaboração do pianista e tecladista João Fera, uma imagem rara de negro no rock. As pegadas já definidas num ska/carimbó, a presença marcante do reggae e a força do power trio que sempre me impressionou no grupo. As letras para lá de conceituais: Teerã, A novidade, Alagados, O homem, Selvagem...
Letras que diziam não às guerras civis, não à proibição do filme”Je vous salue Marie” no Brasil, não à crenças fundamentalistas, não à fome e à condição das palafitas e favelas. E isto tudo nos fazia; apesar dos parcos meios de informação da época; pesquisar história, filosofia, política, religião e geografia.
O bacana em Herbert é que a exemplo de Cazuza, ele já dava os primeiros sinais de um namoro firme com a tradição da MPB. E, em ambos, isto veio a fortalecer a própria geração musical de que faz parte. Em pleno boom do rock e por iniciativa de Herbert, Os Para-Lamas regravam Tim Maia( você) e Jorge Benjor ( Charles Anjo 45).
Em 1988 e 1989, os discos Bora Bora e Bing Bang vem acentuar esta fusão de ritmos ( reggae, rock, ska, samba, coco ) e efetiva o talento de Vianna para baladas românticas, que teriam inúmeras gravações por intérpretes da MPB. Aí estão, nestes discos: a regravação de 1 x 1; as canções Lanterna dos afogados e Quase um segundo; a inspiração em personagens de Jorge Amado; as ritmadas Bora Bora e Cachorro rabugento. Esta última tem a interessante brincadeira musical de fazer os instrumentos cantarem a melodia, enquanto a voz”recita” uma alusão à mesma.
Os discos Os grãos e Severino são os mais conceituais da carreira, tiveram baixa vendagem, mas representam a coragem e o amadurecimento do grupo, onde se radicalizam propostas novas de fusão e de uma plástica abstrata ( em ritmos, arranjos e letras). As experiências servem para que os próximos discos, mais palatáveis, introduzam elementos testados em produções mais experimentais.
Até que em 4 de fevereiro de 2011, Herbert sofre um acidente aéreo em Mangaratiba, RJ, quando o ultraleve que pilotava caiu no mar, devido a um problema de fabricação na baía de Angra dos Reis. No acidente, sua esposa Lucy morre e o músico fica internado durante 44 dias, parte deles em estado de coma. Vianna fica paraplégico e perde parte da memória depois do acidente, porém, em um processo de recuperação gradual, retoma a carreira, voltando aos palcos, e já tendo gravado quatro álbuns após o acidente: Longo Caminho (2002, preparado antes do acidente), Uns Dias ao Vivo (2004, ao vivo), Hoje (2005) e Brasil Afora (2009).
Mas a trajetória de Hebert Vianna, que completou 50 anos em 4 de maio último, inclui também álbuns solos, em que está mais solto e à vontade para novas formas e gêneros musicais:
1992: Ê Batumaré
1997: Santorini Blues
2000: O Som do Sim (com participações de vários convidados, como Fernanda Takai, Zélia Duncan, Cássia Eller, Sandra de Sá e Nana Caymmi).
E há as canções ( sobretudo baladas) que escreveu especialmente para artistas, como Ivete Sangalo, Daniela Mercury, Marina Lima, Ana Carolina, Marisa Monte, Paulo Ricardo e Dulce Quental. Nelas ( como: Milagres, Só pra te Mostrar, Sempre Te Quis, Caleidoscópio, Se Eu Não Te Amasse Tanto Assim, A Lua Que Eu Te Dei, Vem Pra Mim, O Amor Não Sabe Esperar e Nada por mim) expõe sua visão poética sobre a vida, o amor, a felicidade, a eternidade, o efêmero, e a arte.
O compositor, cantor e guitarrista Herbert Vianna chega aos 50 anos, como um músico realizado e cuja importância para a música popular do Brasil pode ser medida pelas interpretações que cantores de diferentes gerações e gêneros emprestam às suas canções. Suas idéias de fusão e de pesquisa sobre os ritmos do nordeste brasileiro mostraram-se viáveis e foram referências para muita coisa que se fez após os anos 80, no universo pop.
Além disto, o exemplo de superação e o retorno aos palcos, como um ser em franco processo de amadurecimento e com muito a contribuir e surpreender em nossa música.
Uma vez, lá na efervescência dos anos 80 e na contramão das influências do rock/pop inglês, ele afirmou à Revista Bizz que” o futuro da música é negro”. O tempo passou e o futuro é hoje. Quem vai dizer que Herbert não tinha razão ?
Aldo Moraes ( compositor )
composermoraes@hotmail.com
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