O nome podia ser de quatrocentona, mas sua verdadeira vocação era a liberdade, que encontrou nos palcos. A paulistana Maria Alice Monteiro de Campos Vergueiro, mais conhecida por Maria Alice Vergueiro, morreu aos 85 anos, em São Paulo, nesta quarta, 3, deixando um legado precioso nos palcos e fora deles. Ela estava internada no Hospital da Clínicas, para tratamento de pneumonia, e seu corpo será cremado na quinta, em Itapecerica da Serra, segundo informou sua filha Maria Silvia.
Pedagoga, professora, atriz e diretora, ela formou alunos como Cacá Rosset, com quem fundou o irreverente Grupo Ornitorrinco (ao lado do ator, já falecido, Luiz Roberto Galizia), participou de montagens históricas, como O Rei da Vela, dirigida por José Celso Martinez Corrêa, e pode ser definida como a maior atriz experimental de sua geração, no sentido de estar sempre aberta a novos autores e linguagens. Foi intérprete de clássicos (Shakespeare, Molière), modernos (Brecht, García Lorca) e contemporâneos (Jodorowsky) com a mesma paixão, a mesma dedicação com que entrou no teatro pela primeira vez, em 1962, para participar de uma montagem de A Mandrágora, sob direção de Augusto Boal.
Exemplo da radicalidade de Maria Alice Vergueiro foi o espetáculo em que encenou o próprio velório, Why the Horse? (2015), em que a atriz encarou a própria morte ao lado do ator que a acompanhou em todos os últimos espetáculos, Luciano Chirolli. Já limitada pelas sequelas do mal de Parkinson e numa cadeira de rodas, Maria Alice, em 2015, queria morrer no palco, mas não foi atendida. A peça chegou a mais de 100 apresentações, cumprindo uma temporada que, em dois anos, ocupou diversas salas. Why the Horse?, não por acaso, fazia referências a Brecht e Jodorowsky, dois autores com os quais a atriz é automaticamente associada.
Seu primeiro Brecht foi a Ópera dos Três Vinténs, montada em 1964, dois anos após a estreia da atriz e na alvorada do golpe militar. Peça musical de Brecht e Kurt Weill, que estreou em Berlim em 1931, adaptada do clássico de John Gay, ela mostrava o submundo do crime e da prostituição como uma parábola política, o que levou o regime nazista a tirar o espetáculo de cartaz. Imagine na época da ditadura a filha de Nicolau Pereira de Campos Vergueiro Neto e de Maria Antônia Borges, pentaneta do senador Vergueiro, um dos mais poderosos políticos do Império do Brasil, desfilando numa peça de Brecht em que o protagonista é Mackie Messer, um vigarista que explora prostitutas e ensina outro bandido, Peachum, seu inimigo, a aperfeiçoar a arte de comandar uma gangue de mendigos pedintes. Foi, claro, um escândalo na família. A ruptura foi inevitável.
Maria Alice preferiu ser fiel ao teatro. Nos dez anos seguintes, sempre atuando sob direção de José Celso Martinez Corrêa, fez outras peças de Brecht – isso em plena vigência do regime militar. Em 1975, participou da histórica montagem de “Galileu Galilei” no Oficina, onde nasceu o grupo Ornitorrinco, cantando, claro, músicas de Brecht e Weill (em 1977). Nesse mesmo ano, a embrionária companhia conquistou os críticos com uma peça ousada adaptada de A Mais Forte, de Strindberg, que virou Os Mais Fortes na versão de Cacá Rosset, diretor com que Maria Alice mais trabalhou depois que fundaram juntos o Ornitorrinco, viajando para vários países com a companhia e participando de festivais importantes como o New York Shakespeare Festival, a convite do produtor Joseph Papp (de A Chorus Line).
Com Rosset, a atriz foi a mulher abandonada pelo amante em O Belo Indiferente, de Jean Cocteau, em 1983, logo após o tremendo sucesso de Mahagonny Songspiel, encenada no mesmo ano pelo grupo Ornitorrinco, tão ultrajante que a detentora dos direitos do compositor Kurt Weill em Nova York logo entrou com uma ação para encerrar a temporada na cidade. A parceria com Rosset iria até 1998, quando o diretor montou O Avarento, de Molière. Nos anos 1980 ela tentou outros caminhos: fez Electra com Creta, dirigida por Gerald Thomas, em 1986, mesmo ano em que entrou em contato com o universo de Beckett, dirigida por Rubens Rusche. Foi uma epifania para ela. Beckett e seu universo oclusivo, em Katastrophé, fizeram Maria Alice optar por um teatro ainda mais radical, sem compromisso com o êxito popular.
A despeito disso, não recusou papéis em novelas de televisão (fez Lucrécia em Sassaricando, em 1987, com Paulo Autran) e participou de vários filmes (Cronicamente Inviável, em 2000, de Sérgio Bianchi, entre outros). Paradoxalmente, depois de uma carreira como essa, foi um curta veiculado no YouTube que a transformou num fenômeno de massa, Tapa na Pantera, em que interpreta uma mulher que fuma maconha há mais de 30 anos e encerra seu depoimento com uma observação: “E nunca fiquei viciada”. Esse humor era bem típico de Maria Alice. Ainda é possível ouvir sua sonora e adorável gargalhada ecoando no mundo.
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