terça-feira, 2 de junho de 2020

LEMBRANÇAS DE RAUL DE SOUZA: TEXTO DE NELSON BRAVO




Em junho de 2005 o pianista/cardiologista Márcio Hallack, de Juiz de Fora, pediu-me para levar dois de seus CDs ao seu amigo trombonista Raul de Souza, que vivia em Paris.  Ambos já tinham tocado juntos e se tornado amigos no Festival de Jazz de Ouro Preto, anos antes. Como eu ficaria em Paris por um mês, mesmo sem dispor do endereço domiciliar do mutante Raul de Souza, achei que tiraria essa de letra, não vendo ali nenhum obstáculo para quebrar esse galho para o amigo Hallack.

Mas como localizar o célebre Raul de Souza, em Paris, se em mãos eu só dispunha de um cartãozinho branco com o seu nome, além de alguma coisa nele escrita (algo como Blue Touch Jazz, se bem me lembro), e um endereço, embaixo, na badalada avenue des Champs Élysées? Dessa forma, deduzi que ali deveria ser o local da sua produtora, ou algo assim.   Uma manhã, motivado pela expectativa de encontrar meu ídolo – em carne e trombone – me mandei para a Champs Élysées.  Procura daqui, pergunta dali, acabei descobrindo que o tal endereço sequer existia na célebre avenue!  E agora, como sair daquela sinuca?  Por sorte, era véspera de 21 de junho, quando se realiza, em Paris, anualmente, a célebre  Fête de la Musique, e a cidade respira música em todas as direções, recebendo, sob a égide da Prefeitura, inúmeros cantores, bandas e instrumentistas do mundo inteiro. Os shows são gratuitos e apresentados nos mais variados espaços públicos, seja na Bastille, em La Villette, no Jardin du Luxembourg ou em La Défense.  E como estávamos no verão,  Paris era um sonho, com seus zilhões de turistas e o sol nascendo às 6 da manhã e se pondo só depois das 10:30h da noite, espichando o dia de forma agradabilíssima. 

Nas ruas do Quartier Latin, numa prévia do que viria nos dias subsequentes, eu já tinha visto um tenebroso caminhão de som, igualzinho aos que enlouquecem o povo de Salvador, na Bahia, com dezenas de alto-falantes a todo vapor, poluindo o bairro com o pior da música brasileira.   Defendendo meus tímpanos com as mãos em concha, escapei dele como pude, esgueirando-me por algumas vielas do Quartier Latin.  Na ocasião, tudo em Paris era válido – até a venda de toneladas de livros de Paulo Coelho, no Grand Palais (argh!), numa Exposição de arte indígena, quando se comemorava o Ano do Brasil, na França. Saí a mil pelo agitado boulevard Saint-Michel, quando a intuição levou-me a consultar a programação da Fête de la Musique.  Heureca!   Lá estava o nome do Raul de Souza, “escalado” para tocar na noite seguinte, mas na distante commune de Gif-sur-Yvette, uma localidade bela e verdejante, equivalente à nossa Itaipava, distante 24 km a sudoeste de Paris, local onde talvez nenhum pobre ainda tivesse pisado, a não ser este incauto escriba, que para lá se encaminhava.   Para chegar a Gif-sur-Yvette foi preciso tomar o trem (RER) na gigantesca estação Les Halles/Châtellet, no coração de Paris. Segui nele até  Courcelle-sur-Yvette, onde desci e tomei o metrô de superfície que me levaria a Raul de Souza, em Gif-sur-Yvette, local da Fête de la Musique e palco da sua performance.  Cheguei na hora do almoço e fui calorosamente recebido por ele e sua mulher francesa.  O show realizou-se em noite cálida e o Raul tocou como um deus, no alto de um palco, montado em amplo gramado, cercado de árvores, riacho, flores, pequenas pontes e raras edificações. Uma delas era a sede da fortíssima CGT, a Central Geral dos Trabalhadores franceses, em cujo restaurante jantamos, tarde da noite, após o show. Voltamos a Paris de carro, dirigido pela mulher do Raul.  Como residiam em Gentilly, no Sul da cidade, antes do Bouleverd Périphérique, desci na estação de metrô mais próxima, justamente a de Gentilly.  De lá, segui até o regurgitante bairro do Marais,  local do meu “cafofo”.  Ufa! Estava morto de canseira, mas imensamente feliz. 

Deitei-me, rememorando horas e horas de papo com o fabuloso Raul de Souza, homem sensível, fraterno e caloroso, que muito me agradeceu pela visita e pelos CDs do Márcio Hallack. Dele ouvi histórias incríveis, sobretudo de seus começos, no Rio, em programas de calouros, com dificuldades financeiras enormes, e, mais tarde, em compensação, gravando com os maiores intérpretes internacionais.  Raul contou casos deliciosos e reviveu momentos de suas vivências no México, Estados Unidos e França, locais em que morou, além do Brasil, sem falar nas suas performances nos mais prestigiados festivais de jazz do mundo, em que se apresenta até hoje,  Em sua espetacular carreira, como esquecer que Raul  tocou com Sarah Vaughan, Wayne Shorter, Sonny Rollins, Sérgio Mendes, Hermeto Paschoal, Tom Jobim, Freddy Hubbard, Frak Rosolino, Keny Clarke, Ron Carter, Milton Nascimento, Maria Bethânia, João Donato, Roberto Carlos, Airto Moreira, Flora Purim, J.J. Johnson, dentre outras celebridades do show-bizz?  A propósito, nesse nosso encontro, evocamos a tragédia envolvendo seu grande amigo e igualmente brilhante trombonista americano Frank Rosolino (1926-1978), que tocou com Charlie Parker, Paul Chambers, Jones brothers, Gene Krupa, Stan Kenton e acompanhou ícones como Frank Sinatra, Tony Bennett, Sarah Vaughan, Quincy Jones e Benny Carter.  Aliás, a exuberante carreira de Rosolino teria um desfecho trágico, com a morte de um de seus filhos e a cegueira de outro, de apenas 7 e 9 anos, respectivamente, a ele atribuídas num momento de desvario; e, a seguir, seu suicídio, aos 52 anos de idade, em pleno apogeu artístico.    
Rosolino foi um trombonista e ser humano extraordinário, com quem o Raul dividiu a cena no Festival de Jazz de São Paulo, em 1978, período em que o Raul usava calças justas boca-de-sino, e cultivava uma cabeleira afro que humilhava até a juba ruiva do seu amigo Hermeto Paschoal. Ainda evocando esse encontro, no subúrbio de Paris, lembro de que, naquela ocasião, levei-lhe, além dos CDs do pianista Márcio Hallack, algumas revistas do Brasil e um jornal em que eu escrevia sobre  música, cinema e artes em geral, em Juiz de Fora.   Isso lhe chamou atenção e fez com que me pedisse para escrever sua biografia, proposta sedutora e surpreendente, mas que recusei por julgar-me incompetente para tal mister, além  de motivos de ordem pessoal, pois na época encontrava-me impossibilitado de deixar Juiz de Fora, ficando, assim, excluída qualquer possibilidade de viagem de longo curso para   pesquisas externas, entrevistas, etc. 

Logo depois, ainda em 2005, fui ciceroneá-lo no Rio e tive o privilégio de carregar seu trombone de oito quilos, coisa que já fizera em Paris, para aliviá-lo do peso quando nos locomovíamos, pois o Raul foi vítima, há muitos anos, de um atropelamento que afetou-lhe um pouco as pernas, embora isso seja imperceptível visualmente.  Na época, o mestre estava em forma física surpreendente, para os seus 71 anos. Fumava um cigarrinho de vez em quando, assim como tomava um uisque, mas sem exageros. Veio ao Brasil com a sua banda parisiense (que dizia detestar e na qual tinha até um “cunhado” francês, que ele também não “engolia”) para o lançamento de seu novo Álbum, Elixir. O evento consistiu em dois shows antológicos, programados à noite para a sala Baden Powell, em Copacabana. Infelizmente, talvez por for falta de divulgação, foi discreto mas vibrante, o público nessas apresentações. Ao seu final, saímos com amigos para jantar na orla da Avenida Atlântica. 

No dia seguinte, instalado com sua banda num dos hotéis das proximidades, antes de seguir para São Paulo, levei-o de metrô a Botafogo,  com alguns de seus músicos, para espairecer e  curtir o documentário Coisa Mais Linda – Histórias e Casos da Bossa-Nova.  Percebi que  o Raul estava um pouco estressado.  É que ficara sem grana, devido a um problema com seu cartão bancário francês, que não funcionava nos caixas eletrônicos do Rio, mesmo após várias tentativas.  Assim, achei que seria boa pedida levá-lo para assistir ao documentário do Paulo Thiago sobre a Bossa Nova, pois tinha muito a ver com o Raul, que conheceu, conviveu e tocou com vários músicos que nele eram mostrados.   Instalamo-nos num cinema da praia de Botafogo, e ele se sentou ao meu lado.  Quando surgiu na tela a figura do produtor e showman Miele, parceiro contumaz de Elis Regina e nome consagrado da Bossa Nova nos palcos da vida, o Raul, cabreiro, desabafou: “Pô, uma vez, esse cara me contratou. Fiz alguns  shows pra ele, em São Paulo, mas depois ele não queria me pagar.  Ah, m’ermão, um dia, fui pra cima dele e disse: “Se você não me pagar, vou te matar! ”.   Claro que, diante de um angelical apelo bélico como aquele, a grana acabaria pintando. 

Em meados de dezembro de 2014, estive com o Raul de Souza pela última vez.  Agora, ele vinha tocar no Juiz de Fora Jazz Festival, onde também se apresentaram João Bosco e meu amigo Márcio Hallack.  Passamos a tarde papeando numa saleta atrás do palco, quando o presenteei com um álbum pessoal, contendo fotos, desenhos e a reprodução de dezenas de cartinhas recebidas de Carlos Drummond de Andrade. Sempre fraterno, leal e solidário, dele ouvi outras  histórias de sua vida pessoal e artística, lembrando a época em que tocou pelo Brasil e pelo mundo, com gente inesquecível.  Como se sabe, o Raul de Souza tem uma memória elefantina e é fidelíssimo aos seus amigos, dos quais jamais se esquece, prova do seu grande caráter.  Homem de fé inabalável, está sempre ancorado na certeza da proteção divina, em seus momentos difíceis.

Esse autodidata incrível começou a tocar trombone aos 16 anos, na banda da Fábrica de Tecidos Bangu. Anos depois, morando nos Estados Unidos, estudou no Berklee College of Music, de Boston, Massachussets, que utiliza, até hoje, seu disco Colors (de 1975), produzido por Airto Moreira, como matéria didática do instrumento para seus alunos. Aliás, em 1957, Raul de Souza fez sua primeira gravação ao lado da Turma da Gafieira, num grupo que reunia jovens promissores como Baden Powell, Sivuca e Edison Machado. Em 1963, excursionou pela primeira vez à Europa, com o grupo Bossa Rio, de Sérgio Mendes, e com o qual gravou o LP Você ainda não ouviu nada. Em suas andanças pelo mundo, Raul morou no México e nos Estados Unidos, radicando-se em Paris, nos anos 90. Agora, oscila entre São Paulo e Paris. Mas continua brasileiríssimo.  Em 2013, recebeu o Prêmio da Música Brasileira, na categoria Melhor Solista Instrumental/Canção Popular, pelo DVD O universo musical de Raul de Souza, onde toca com Altamiro Carrilho, João Donato e Hector Costita.  Em 1987, Raul de Souza foi contemplado com o título de Cidadão Honorário da cidade de Atlanta, na Geórgia.  

Criador do seu próprio modelo de trombone, patenteado como Souzabone, para explorar novas sonoridades do instrumento, foi concebido, a seu pedido, em Los Angeles, pelo artista Dominique Calicio, com quatro válvulas, em vez das três tradicionais, uma das quais é cromática e afinada em dó, e podem ser mais claramente percebidas em seus álbuns Sweet Lucy e Don’t ask my neighbours. 

 João José Pereira de Souza, carioca de Campo Grande, onde nasceu a 23 de agosto de 1934, é hoje considerado por algumas revistas especializadas o mais importante trombonista vivo do mundo. Antes, quando ainda tocava em gafieiras e programas de calouros cariocas, adotou, por sugestão de Ary Barroso, o nome artístico de Raulito, depois mudado para Raulzinho e, finalmente, para Raul de Souza, hoje, praticamente sinônimo de trombone. De que mais carecia para ser eterno?  Vida longa, Raul de Souza!

Nelson Bravo – Juiz de Fora




 Fotos extraidas do site do músico: https://rauldesouza.net/

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