quarta-feira, 18 de maio de 2022

NOSSAS ÚLTIMAS VIAGENS: ARTIGO DE NELSON BRAVO

Nosso saudoso e querido compositor Aldir Blanc, eterno parceiro de João Bosco, imensa figura humana e um dos maiores letristas do Brasil, partiu em maio de 2020. Dizia que sua maior alegria era ser um compositor popular. Na música, teve parceiros geniais: João Bosco, Guinga, Maurício Tapajós, Moacyr Luz, Cristóvão Bastos, Paulo Emílio e tantos outros.
Agora, queremos revelar uma outra parceria estabelecida por ele, absolutamente ignorada pelo grande público, mas não menos importante. Ela nunca saiu do tom, embora nada tenha a ver com música e ocupou lugar de honra nos registros dos seus afetos. Laboriosamente esculpida com o cinzel do tempo e do amor, foi solada exclusivamente com as cordas do coração, dispensando qualquer instrumento de orquestra, pois bastava-se a si mesma.
Todos vivemos movimentos de amizade com terceiros, mas de forma fragmentária e tangencial, quase sempre de acordo com os nossos interesses e conveniências. Afinal, o outro é apenas nosso coadjuvante, quando não nosso concorrente potencial. Daí ser quase impossível fincar nesses movimentos raízes profundas que nos livrem a cara de neles mostrar o que realmente somos: nosso egoísmo, ciúme, inveja ou vaidade, quando não o ódio, repulsa ou traição. Por mais que disfarcemos e tentemos ocultar essas imperfeições morais, elas continuam rondando e se insinuando indiscretas, ao menor descuido, nas fissuras abertas em nosso caráter. Não foi por acaso que o filósofo chinês Lao-Tsé sentenciou: “Não há segredo da alma que o comportamento não revele”. Nosso acervo de disfarces para camuflar o que verdadeiramente somos, pode ser ardiloso, mas será sempre precário e limitado.
Desprovidos da permanência necessária que os habilitem a suportar os ventos e tempestades da vida, esses movimentos de amizade sincera são raríssimos. Reclamam, para manter sua chama ardente e viva, o sopro dos mecanismos da maturidade e da habilidade dos equilibristas.
Mais fácil acertar na loteria. É comovente na história da família de João Bosco, em Ponte Nova (MG), a amizade exemplar estabelecida de forma natural e espontânea entre Aldir Blanc e o sr. Daniel Mucci, pai de João, desde que se conheceram, em tempos longínquos, naquela pacata cidadezinha mineira. Daniel era homem simples. De origem síria, como tantos moradores dali, onde a colônia árabe era grande, levava existência modesta, sem qualquer “grilo” de ordem material ou metafísica. Essa relação fraterna vivida pelos dois, com grande transparência e nenhuma ranhura, anos a fio, constitui fato notável e nada tem a ver com a dupla de músicos formada por Aldir Blanc e João Bosco.
Ela é uma aventura à parte. Nossos protagonistas pareciam intuir tudo sobre a alma e os sentimentos, um do outro. Embora de diferentes idades e mesmo reconhecendo que seu convívio não era diário, até porque Aldir morava no Rio e Daniel em Minas, não deixou de ser uma relação excepcional. Aldir era intelectual e doutor, mas chutou o “canudo” e se “amancebou” com a música. Daniel era securitário e vendia “bugigangas” domésticas para reforçar o orçamento. E assim vivia em paz.
Habitando mundos tão diversos, essa amizade atendia aos seus impulsos íntimos, impossíveis de domesticar ou demarcar. Como escreveu Pascal, “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. E as razões deles pareciam ser a de celebrar, com naturalidade e despretensão, o sagrado exercício da fraternidade universal, preconizada pelo Mestre. Feita de gestos cotidianos prosaicos, era pura como a água cristalina da fonte. Por isso, capaz até de reverberar um pouquinho de inveja, em todos nós. Quando Aldir deixava o sufoco do Rio pra “desenferrujar a alma”, na roça, em Ponte Nova, sabia que ali o aguardava seu parceiro ideal pra fruir dias de relaxamento e paz. Era a oportunidade de sentirem-se livres pra pescar cascudos, vadiar pelo vilarejo, jogar conversa fora, cartear, tomar cervejas e chupar laranjas no quintal da casa de Daniel, que o aguardava, desde cedo, sentado num caixote... de laranjas. Era a época em que se “amarrava cachorro com linguiça”, como se dizia. Não havia a violência e os desmandos de hoje. Bebiam bem, deitavam tarde e ainda conseguiam o prodígio de acordar cedo. Entre eles parecia haver uma comunicação telepática, como a conhecida entre os médiuns. Eram como duas metades que se completavam. Uma espécie de Yin e Yang.
Regida pela camaradagem, respeito mútuo e simplicidade, durou quanto Deus o permitiu, ou seja, até a partida do sr. Daniel Mucci, aos 65 anos. Vista hoje com a perspectiva do tempo, vemos que foi justo prêmio alcançado por eles. Marcada pela generosidade e nobreza de sentimentos, passou há anos-luz das vulgaridades do mundo. Esse tipo de relação só pode florescer no coração de homens bons. Ela passa ao largo de títulos, dinheiro, posses, competição, enfim, frivolidades tolas que tanto infernizam a vida da gente.
No terreno da música, por questão de justiça, abrimos um parêntese para realçar, aqui, outra dupla de amizade exemplar e decisiva, justamente na vida de Aldir Blanc e João Bosco: referimo-nos a Tom Jobim e Vinicius de Moraes, simbiose perfeita entre esses dois gênios e seres humanos especiais, amados por todos. Aliás, Tom participaria da primeira gravação da dupla Aldir Blanc e João Bosco, no Disco de Bolso do Pasquim, de 1972, cantando “Águas de Março”, no lado “A”, e João Bosco, dele e Aldir Blanc, “Agnus Sei”, no Lado “B”. O disco era “O Tom de Antonio Carlos Jobim e o do Tal de João Bosco”, colocando, lado a lado, um artista consagrado e um novato. Vinicius de Moraes seria o mentor e conselheiro de João Bosco e foi quem o acolheu amorosamente no Pouso do Rei, em Ouro Preto, em 1967, mesmo ignorando quem seria aquele rapaz que audaciosamente batia à sua porta, armado com um insolente violão e um amigo de Faculdade, ao lado, para mostrar suas canções, e que dali acabariam inaugurando uma inesperada parceria. E pensar que um ano antes, Vinicius, poeta e homem consagrado internacionalmente, sentara-se ao lado de Sophia Loren, como jurado do Festival de Cinema de Cannes, por ela presidido.
Isso reflete sua simplicidade e grandeza de coração, pouco se lixando para as efemeridades do mundo. Uma coisa é certa: só homens muito especiais, dotados de elevado padrão vibratório e afinidade espiritual são capazes desses gestos, passando ao largo das convenções idiotas do mundo burocrático e desumano em que vivemos. A relação fraterna e original, sem os azedumes da disputa ou da discórdia, entre Aldir Blanc e Daniel MuccI, dispensava manuais de boas maneiras e tratados eruditos de Filosofia. Nasceu espontânea e inesperada: “furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”, como escreveu Carlos Drummond de Andrade, no poema “A Flor e a Náusea”. Para evocar esse tipo de amizade, no campo das Artes, impossível não recorrer à extraordinária ligação, estabelecida no Século XVI, entre os filósofos franceses Michel de Montaigne e Étienne de La Boétie, exemplo solitário que o mundo intelectual reconhece e admira.
Lembramos, por analogia, que nem Freud e Jung, dois gigantes da ciência e profundo conhecedores da alma humana, conseguiram essa proeza. Romperam a amizade e se separaram em poucos anos de convívio. Curioso é que Daniel Mucci nada tinha a ver com música. Nem como “carregador de piano”, digamos. Mas foi, o que é surpreendente, um grande goleiro da Pontenovense e amigo de Carlos José Castilho (1927-1987), consagrado goleiro do Fluminense, do Rio, e da Seleção Brasileira de Futebol. Motivo para Daniel ter sido Fluminense de doer. Aldir Blanc, cruzmaltino fiel e crítico feroz de Eurico Miranda, mandão e Presidente do Vasco, foi apenas “peladeiro” de finais de semana, além de “sinuqueiro” habitual – chegou a ter uma mesa de sinuca em casa - tabelando com Paulinho da Viola, João Nogueira e outros bambas do samba e do taco. Mas nunca viu Daniel jogar. Como adorava futebol, deve ter ouvido mil histórias do amigo sobre sua carreira, sua época e seus feitos nos gramados, como comprovavam os troféus, diplomas e medalhas que Daniel conservava em casa.
Traduzindo seu arrojo como goleiro disputado da Pontenovense, Daniel tinha os dedos das mãos tortos, deformados, e teve até dentes quebrados, nos seus embates em campo. Por isso, Aldir o “sentia” atuando, segundo João Bosco, graças à sua lucidez e imaginação poética, quando ouvia as odisseias do amigo. Como tudo na vida é passageiro, foi traumático e inesperado o desfecho da formidável dupla Aldir Blanc e Daniel Mucci. Um dia, Aldir saiu do Rio com destino a Ponte Nova pra rever seu amigo, que não via há algum tempo. Ansioso, desembarcou em Minas trazendo muitos livros na bolsa e na mão, além de sua chave secreta (da bondade) que abria o coração do parceiro, quando recebeu, chocado, a notícia de que Daniel partira para a eternidade. Aldir viu abrir-se à sua frente uma brutal cratera afetiva.
Mesmo sendo calejado na dor e detentor de reservas colossais de resignação e humanidade, agora, só dando tempo ao tempo para consolar seu coração de menino, ferido de forma tão dilacerante. E concordar, com Sófocles, que escreveu, em “Antígona”: “A morte é a única agressão de que não podemos nos defender por nenhuma fuga...” Essa perda teria um desdobramento inesperado e que resultaria em comovente homenagem póstuma (musical) a Daniel, através de uma canção concebida a seis mãos, pelo triunvirato formado por João Donato, Aldir Blanc e João Bosco, que fizeram “Nossas Últimas Viagens”, intuída por João Bosco num lance aparentemente fortuito. Seus versos reproduzem o cotidiano quase campesino e orvalhado de Aldir Blanc e Daniel Mucci, em Ponte Nova, pintados com as cores da paleta de Aldir Blanc.
Vamos à sua gênese: João Bosco passara um dia e uma noite trabalhando com música e tomando umas e outras na casa do compositor João Donato, pessoa adorável e seu amigo de fé. Ao deixá-lo para ir pra casa, João Donato foi levá-lo até a porta e, na hora de despedir-se, cantou duas frases de uma melodia indefinida, como quem se despede de alguém com muita ternura, como era do seu feitio. João Bosco partiu, mas alguma coisa ficou remexendo na sua cabeça. Havia algo misterioso naquelas duas singelas frases, ditas de forma tão amorosa pelo Donato. Passado algum tempo e numa período em que ele estava circunstancialmente um pouco distanciado de Aldir Blanc, João Bosco pegou seu violão e desenvolveu o tema. Acabou fazendo uma música que, mostrada a João Donato, receberia dele acolhedora recepção. E, a seguir, a sugestão de que deveria pôr uma letra nela. Como João Bosco pensou em recorrer a Aldir Blanc pra fazê-la, falou, antes, com Donato, pra sondar se ele não se melindraria com isso. Como Donato adorava o Aldir e sabia da sua inventividade, achou a ideia ótima e assim foi feito. Aldir recebeu a música e mandou a letra de volta, pelo correio. Ela fala de sua última viagem a Ponte Nova pra visitar o amigo Daniel e, quando, lá chegando, é notificado da sua partida. A canção termina com estes tocantes versos, vazados em linguagem popular, refletindo a singeleza do universo de Daniel: “Nem botei as flô na cova/ Saí sem olhar pra trás/ Fomo os dois de Ponte Nova/ Não voltamo nunca mais...”
Ela seria gravada com o mais profundo sentimento por João Bosco, no Songbook do João Donato; a seguir, Dominguinhos, igualmente emocionado, a gravaria no Songbook do João Bosco que, finalmente, também a cantaria no Canal Brasil, com Aldir Blanc ao seu lado, cerrando os olhos e balançando a cabeça, levemente, ao ritmo da canção, como que “sentindo” a presença de Daniel ali, com eles. Tempos depois, numa noite qualquer, Aldir Blanc estava na casa de João Bosco, no Rio, onde já tinham biritado todas. Bisbilhotava as estantes de livros da sala, onde também havia uma infinidade de retratos em molduras, objetos de adorno e outros chavecos. Num nicho muito discreto, Aldir descobriu, surpreso, uma rara foto de Daniel, dessas tipo 18x24. Quando triscou os olhos nela, desabou em prantos, tomado de profunda emoção, como uma criança que encontrasse o retrato do pai, que saíra em viagem para nunca mais voltar.
Por fim, algumas palavras adicionais sobre a nobreza de caráter do nosso inigualável Aldir Blanc: leitor voraz dos Clássicos e dos populares, encontramos na figura do sonhador e visionário personagem Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, herói do romance “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, em seus traços essenciais, o perfil “cuspido e escarrado” de Aldir Blanc, assim descrito pela sensibilidade do autor: “Desinteressado de dinheiro, de glória e posição, vivendo numa reserva de sonho, adquirira a candura e a pureza d’alma que vão habitar esses homens de uma ideia fixa, os grandes estudiosos, os sábios e os inventores, gente que fica mais terna, mais ingênua, mais inocente que as donzelas das poesias de outras épocas. É raro encontrar homens assim, mas os há e, quando se os encontra, mesmo tocados de um grão de loucura, a gente sente mais simpatia pela nossa espécie, mais orgulho de ser homem e mais esperança na felicidade da raça.”
Que nossos inesquecíveis amigos Aldir Blanc e Daniel Mucci continuem eternamente em nossos corações, contemplando, das estrelas, João Bosco, Dominguinhos e tantos outros, interpretar “Nossas Últimas Viagens”, tomando umas boas cervejas (sem álcool) e chupando laranjas (sem agrotóxicos).
(Link da canção "Nossas Últimas Viagens", no Youtube:
Todas as fotos foram extraídas do site do cantor e compositor Tunai e do site e facebook do cantor e compositor João Bosco
Escrito por Nelson Bravo – Juiz de Fora (MG)

Um comentário:

  1. Bravo Nelson . Belo texto . João e Aldir são uns mestres

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