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sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022
NOSSAS ÚLTIMAS VIAGENS: ARTIGO DE NELSON BRAVO
Nosso saudoso e querido compositor Aldir Blanc, eterno
parceiro de João Bosco, imensa figura humana e um dos
maiores letristas do Brasil, partiu em maio de 2020. Dizia que
sua maior alegria era ser um compositor popular. Na música,
teve parceiros geniais: João Bosco, Guinga, Maurício Tapajós,
Moacyr Luz, Cristóvão Bastos, Paulo Emílio e tantos outros.
Agora, queremos revelar uma outra parceria estabelecida por
ele, absolutamente ignorada pelo grande público, mas não
menos importante. Ela nunca saiu do tom, embora nada tenha
a ver com música e ocupou lugar de honra nos registros dos
seus afetos. Laboriosamente esculpida com o cinzel do tempo e
do amor, foi solada exclusivamente com as cordas do coração,
dispensando qualquer instrumento de orquestra, pois bastava-
se a si mesma.
Sabemos que todos vivemos movimentos de amizade com terceiros, mas de
forma fragmentária e tangencial, quase sempre de acordo com
os nossos interesses e conveniências. Afinal, o outro é apenas
nosso coadjuvante, quando não nosso concorrente potencial.
Daí ser quase impossível fincar nesses movimentos raízes
profundas que nos livrem a cara de neles mostrar o que
realmente somos: nosso egoísmo, ciúme, inveja ou vaidade,
quando não o ódio, repulsa ou traição. Por mais que
disfarcemos e tentemos ocultar essas imperfeições morais, elas
continuam rondando e se insinuando indiscretas, ao menor
descuido, nas fissuras abertas em nosso caráter.
Não foi por acaso que o filósofo chinês Lao-Tsé sentenciou: “Não há
segredo da alma que o comportamento não revele”. Nosso
acervo de disfarces para camuflar o que verdadeiramente
somos, pode ser ardiloso, mas será sempre precário e limitado.
Desprovidos da permanência necessária que os habilitem a
suportar os ventos e tempestades da vida, esses movimentos
de amizade sincera são raríssimos. Reclamam, para manter sua
chama ardente e viva, o sopro dos mecanismos da maturidade
e da habilidade dos equilibristas. Mais fácil acertar na loteria.
É comovente na história da família
de João Bosco, em Ponte Nova (MG), a amizade exemplar
estabelecida de forma natural e espontânea entre Aldir Blanc e
o sr. Daniel Mucci, pai de João, desde que se conheceram, em
tempos longínquos, naquela pacata cidadezinha mineira. Daniel
era homem simples. De origem síria, como tantos moradores
dali, onde a colônia árabe era grande, levava existência
modesta, sem qualquer “grilo” de ordem material ou
metafísica. Essa relação fraterna vivida pelos dois, com grande
transparência e nenhuma ranhura, anos a fio, constitui fato
notável e nada tem a ver com a dupla de músicos formada por
Aldir Blanc e João Bosco.
Ela é uma aventura à parte. Nossos protagonistas pareciam
intuir tudo sobre a alma e os sentimentos, um do outro.
Embora de diferentes idades e mesmo reconhecendo que seu
convívio não era diário, até porque Aldir morava no Rio e
Daniel em Minas, não deixou de ser uma relação excepcional.
Aldir era intelectual e doutor, mas chutou o “canudo” e se
“amancebou” com a música. Daniel era securitário e vendia
“bugigangas” domésticas para reforçar o orçamento. E assim
vivia em paz.
Habitando mundos tão diversos, essa amizade atendia aos seus
impulsos íntimos, impossíveis de domesticar ou demarcar.
Como escreveu Pascal, “o coração tem razões que a própria
razão desconhece”. E as razões deles pareciam ser a de
celebrar, com naturalidade e despretensão, o sagrado exercício
da fraternidade universal, preconizada pelo Mestre. Feita de
gestos cotidianos prosaicos, era pura como a água cristalina da
fonte. Por isso, capaz até de reverberar um pouquinho de
inveja, em todos nós.
Quando Aldir deixava o sufoco do Rio pra
“desenferrujar a alma”, na roça, em Ponte Nova, sabia que ali o
aguardava seu parceiro ideal pra fruir dias de relaxamento e
paz. Era a oportunidade de sentirem-se livres pra pescar
cascudos, vadiar pelo vilarejo, jogar conversa fora, cartear,
tomar cervejas e chupar laranjas no quintal da casa de Daniel,
que o aguardava, desde cedo, sentado num caixote... de
laranjas. Era a época em que se “amarrava cachorro com
linguiça”, como se dizia. Não havia a violência e os desmandos
de hoje. Bebiam bem, deitavam tarde e ainda conseguiam o
prodígio de acordar cedo. Entre eles parecia haver uma
comunicação telepática, como a conhecida entre os médiuns.
Eram como duas metades que se completavam. Uma espécie
de Yin e Yang.
Regida pela camaradagem, respeito mútuo e simplicidade,
durou quanto Deus o permitiu, ou seja, até a partida do sr.
Daniel Mucci, aos 65 anos. Vista hoje com a perspectiva do
tempo, vemos que foi justo prêmio alcançado por eles.
Marcada pela generosidade e nobreza de sentimentos, passou
há anos-luz das vulgaridades do mundo. Esse tipo de relação só
pode florescer no coração de homens bons. Ela passa ao largo
de títulos, dinheiro, posses, competição, enfim, frivolidades
tolas que tanto infernizam a vida da gente.
No terreno da música, por questão de justiça, abrimos um
parêntese para realçar, aqui, outra dupla de amizade exemplar
e decisiva, justamente na vida de Aldir Blanc e João Bosco:
referimo-nos a Tom Jobim e Vinicius de Moraes, simbiose
perfeita entre esses dois gênios e seres humanos especiais,
amados por todos. Aliás, Tom participaria da primeira gravação
da dupla Aldir Blanc e João Bosco, no Disco de Bolso do
Pasquim, de 1972, cantando “Águas de Março”, no lado “A”, e
João Bosco, dele e Aldir Blanc, “Agnus Sei”, no Lado “B”. O
disco era “O Tom de Antonio Carlos Jobim e o do Tal de João
Bosco”, colocando, lado a lado, um artista consagrado e um
novato. Vinicius de Moraes seria o mentor e conselheiro de
João Bosco e foi quem o acolheu amorosamente no Pouso do
Rei, em Ouro Preto, em 1967, mesmo ignorando quem seria
aquele rapaz que audaciosamente batia à sua porta, armado
com um insolente violão e um amigo de Faculdade, ao lado,
para mostrar suas canções, e que dali acabariam inaugurando
uma inesperada parceria. E pensar que um ano antes,
Vinicius, poeta e homem consagrado
internacionalmente, sentara-se ao lado de Sophia Loren, como
jurado do Festival de Cinema de Cannes, por ela presidido.
Isso reflete sua simplicidade e grandeza de coração, pouco se
lixando para as efemeridades do mundo.
Uma coisa é certa e isso reiteramos, aqui: só
homens muito especiais, dotados de elevado padrão vibratório
e afinidade espiritual são capazes desses gestos, passando ao
largo das convenções idiotas do mundo burocrático e
desumano em que vivemos. A relação fraterna e original, sem
os azedumes da disputa ou da discórdia, entre Aldir Blanc e
Daniel MuccI, dispensava manuais de boas maneiras e tratados
eruditos de Filosofia. Nasceu espontânea e inesperada: “furou
o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”, como escreveu Carlos
Drummond de Andrade, no poema “A Flor e a Náusea”.
Para evocar esse tipo de amizade, no campo das Artes, impossível
não recorrer à extraordinária ligação, estabelecida no Século
XVI, entre os filósofos franceses Michel de Montaigne e Étienne
de La Boétie, exemplo solitário que o mundo intelectual
reconhece e admira.
Lembramos, por analogia, que nem Freud e Jung, dois gigantes
da ciência e profundo conhecedores da alma humana,
conseguiram essa proeza. Romperam a amizade e se separaram
em poucos anos de convívio. Curioso é que Daniel Mucci nada
tinha a ver com música. Nem como “carregador de piano”,
digamos. Mas foi, o que é surpreendente, um grande goleiro da
Pontenovense e amigo de Carlos José Castilho (1927-1987),
consagrado goleiro do Fluminense, do Rio, e da Seleção
Brasileira de Futebol. Motivo para Daniel ter sido Fluminense
de doer.
Aldir Blanc, cruzmaltino fiel e crítico feroz de Eurico
Miranda, mandão e Presidente do Vasco, foi apenas
“peladeiro” de finais de semana, além de “sinuqueiro” habitual
– chegou a ter uma mesa de sinuca em casa - tabelando com
Paulinho da Viola, João Nogueira e outros bambas do samba e
do taco. Mas nunca viu Daniel jogar. Como adorava futebol,
deve ter ouvido mil histórias do amigo sobre sua carreira, sua
época e seus feitos nos gramados, como comprovavam os
troféus, diplomas e medalhas que Daniel conservava em casa.
Traduzindo seu arrojo como goleiro disputado da
Pontenovense, Daniel tinha os dedos das mãos tortos,
deformados, e teve até dentes quebrados, nos seus embates
nos gramados. Por isso, Aldir o “sentia” atuando, segundo João
Bosco, graças à sua lucidez e imaginação poética, quando ouvia
as odisseias do amigo.
Como tudo na vida é passageiro, foi
traumático e inesperado o desfecho da formidável dupla Aldir
Blanc e Daniel Mucci. Um dia, Aldir saiu do Rio com destino a
Ponte Nova pra rever seu amigo, que não via há algum tempo.
Ansioso, desembarcou em Minas trazendo muitos livros na
bolsa e na mão, além de sua chave secreta (da bondade) que
abria o coração do parceiro, quando recebeu, chocado, a
notícia de que Daniel partira para a eternidade. Aldir viu abrir-
se à sua frente uma brutal cratera afetiva.
Mesmo sendo calejado na dor e detentor de reservas colossais
de resignação e humanidade, agora, só dando tempo ao tempo
para consolar seu coração de menino, ferido de forma tão
dilacerante. E concordar, com Sófocles, que escreveu, em
“Antígona”: “A morte é a única agressão de que não podemos
nos defender por nenhuma fuga...” Essa perda teria um
desdobramento inesperado e que resultaria em comovente
homenagem póstuma (musical) a Daniel, através de uma
canção concebida a seis mãos, pelo triunvirato formado por
João Donato, Aldir Blanc e João Bosco, que fizeram “Nossas
Últimas Viagens”, intuída por João Bosco num lance
aparentemente fortuito.
Seus versos reproduzem o cotidiano
quase campesino e orvalhado de Aldir Blanc e Daniel Mucci, em
Ponte Nova, pintados com as cores da paleta de Aldir Blanc.
Vamos à sua gênese: João Bosco passara um dia e uma noite
trabalhando com música e tomando umas e outras na casa do
compositor João Donato, pessoa adorável e seu amigo de fé. Ao
deixá-lo para ir pra casa, João Donato foi levá-lo até a porta e,
na hora de despedir-se, cantou duas frases de uma melodia
indefinida, como quem se despede de alguém com muita
ternura, como era do seu feitio. João Bosco partiu, mas
alguma coisa ficou remexendo na sua cabeça. Havia algo
misterioso naquelas duas singelas frases, ditas de forma tão
amorosa pelo Donato.
Passado algum tempo e numa período
em que ele estava circunstancialmente um pouco distanciado
de Aldir Blanc, João Bosco pegou seu violão e desenvolveu o
tema. Acabou fazendo uma música que, mostrada a João
Donato, receberia dele acolhedora recepção. E, a seguir, a
sugestão de que deveria pôr uma letra nela. Como João Bosco
pensou em recorrer a Aldir Blanc pra fazê-la, falou, antes, com
Donato, pra sondar se ele não se melindraria com isso. Como
Donato adorava o Aldir e sabia da sua inventividade, achou a
ideia ótima e assim foi feito. Aldir recebeu a música e
mandou a letra de volta, pelo correio. Ela fala de sua última
viagem a Ponte Nova pra visitar o amigo Daniel e, quando, lá
chegando, é notificado da sua partida. A canção termina com
estes tocantes versos, vazados em linguagem popular,
refletindo a singeleza do universo de Daniel: “Nem botei as flô
na cova/ Saí sem olhar pra trás/ Fomo os dois de Ponte Nova/
Não voltamo nunca mais...”
Ela seria gravada com o mais profundo sentimento por João
Bosco, no Songbook do João Donato; a seguir, Dominguinhos,
igualmente emocionado, a gravaria no Songbook do João Bosco
que, finalmente, também a cantaria no Canal Brasil, com Aldir
Blanc ao seu lado, cerrando os olhos e balançando a cabeça,
levemente, ao ritmo da canção, como que “sentindo” a
presença de Daniel ali, com eles.
Tempos depois, numa noite
qualquer, Aldir Blanc estava na casa de João Bosco, no Rio,
onde já tinham biritado todas. Bisbilhotava as estantes de
livros da sala, onde também havia uma infinidade de retratos
em molduras, objetos de adorno e outros chavecos. Num nicho
muito discreto, Aldir descobriu, surpreso, uma rara foto de
Daniel, dessas tipo 18x24. Quando triscou os olhos nela,
desabou em prantos, tomado de profunda emoção, como uma
criança que encontrasse o retrato do pai, que saíra em viagem
para nunca mais voltar.
Por fim, algumas palavras adicionais sobre a nobreza de caráter
do nosso inigualável Aldir Blanc: leitor voraz dos Clássicos e dos
populares, encontramos na figura do sonhador e visionário
personagem Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, herói do
romance “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, em seus traços
essenciais, o perfil “cuspido e escarrado” de Aldir Blanc, assim
descrito pela sensibilidade do autor: “Desinteressado de
dinheiro, de glória e posição, vivendo numa reserva de sonho,
adquirira a candura e a pureza d’alma que vão habitar esses
homens de uma ideia fixa, os grandes estudiosos, os sábios e os
inventores, gente que fica mais terna, mais ingênua, mais
inocente que as donzelas das poesias de outras épocas. É raro
encontrar homens assim, mas os há e, quando se os encontra,
mesmo tocados de um grão de loucura, a gente sente mais
simpatia pela nossa espécie, mais orgulho de ser homem e mais
esperança na felicidade da raça.”
Que nossos inesquecíveis amigos Aldir Blanc e Daniel Mucci
continuem eternamente em nossos corações, contemplando,
das estrelas, João Bosco, Dominguinhos e tantos outros,
interpretar “Nossas Últimas Viagens”, tomando umas boas
cervejas (sem álcool) e chupando laranjas (sem agrotóxicos).
Link da canção "Nossas Últimas Viagens", constante, no Youtube, sob o título:
"Homenagem a Aldir Blanc | Cantos Gerais - O Canto de Aldir Blanc"
https://www.youtube.com/watch?v=uZ1lDbYRQFE
Nelson Bravo - Juiz de Fora (MG)
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