Biografia
O livro que conta a história de Francisco de Paula Victor, escrito pelo
teólogo italiano Gaetano Passarelli, começa com um sonho.
O jovem negro,
escravo, que passava seus dias na Campanha (MG) do início do século
XIX, revela ao seu professor de alfaiataria que queria ser padre. Era um
sonho impossível a pessoas como ele à época, mas ter fé é crer no que
não é possível. E Victor venceu todos os preconceitos e barreiras
sociais, se tornando o primeiro padre ex-escravo do Brasil. No dia 14 de
novembro, ele será beatificado pela Igreja Católica em Três Pontas
(MG).
O que se sabe de Victor está descrito nos poucos documentos que ele
deixou em vida e nas dezenas de depoimentos das pessoas que o
conheceram. São histórias passadas de pais para filhos que contam de sua
humildade, total dedicação às pessoas, persistência ante obstáculos
racistas. O que se pode perceber na vida de Padre Victor é que a fé
realmente "remove montanhas", e um sonho é capaz de mudar a realidade de
uma época.
A história de Padre Victor começa em um casarão na Rua Direita da Campanha
(MG) de 1827. Foi ali que ele nasceu no dia 12 de abril. O primeiro
documento consta que ele foi batizado oito dias depois pelo padre
Antônio Manoel Teixeira. Cidade mais antiga do Sul de Minas, àquela
época a vila de Campanha da Princesa da Beira reunia fazendeiros em
busca de ouro e seus escravos.
Victor nasceu escravo, mas não viveu como um. Veio ao mundo na casa de
dona Marianna Bárbara Ferreira, que de forma contrária à época, tratava
os escravos da casa com dignidade. Por Victor, o carinho foi maior ainda
e ela se tornou sua madrinha. Sob sua tutela, ele aprendeu a ler,
escrever, tocar piano, falar em francês. Aprendeu até a sonhar.
O casarão onde Victor nasceu permanece em pé até os dias de hoje.
Atualmente a Rua Direita se chama Saturnino de Oliveira e o casarão
abriga uma loja de artesanato da família da artista Marisol Garcia da
Luz, de 51 anos. Ela e a filha Júlia da Luz, de 34 anos, tomaram como
missão preservar a história de Padre Victor. Formada em turismo, Júlia
chegou a desenvolver um trabalho acadêmico sobre a casa em que mora há
uma década.
Vida no interior das Minas de outrora
Casarão em Campanha, MG, onde Padre Victor nasceu - em pé até atualmente (Foto: Samantha Silva / G1)
Segundo ela, o velho casarão colonial só foi alterado em alguns
detalhes, após passar por duas reformas. As telhas mudaram para as
francesas e foram tiradas as feitas na coxa pelos escravos. As janelas
de guilhotina foram substituídas pelas de folha e detalhes de vidro
foram colocados nos pórticos das portas. Banheiros que não existiam na
época e uma varanda ao fundo foram construídos.
“Quando chegamos, foi uma surpresa. A gente não sabia que ele tinha
nascido aqui, o imóvel já estava fechado há algum tempo. Aí a gente
percebeu que tinha muita história [para preservar]", conta Júlia, e
continua descrevendo o que sabe. "Dona Marianna era uma mulher de
posses. Eles tinham dinheiro, moravam no centro da [vila]. [A família
dela] tinha eira e beira.”
A expressão de tempos antigos é explicada por Júlia: eira é o eirado,
espaço onde as pessoas secavam sementes, criavam pequenos animais. A
beira é o beiral do telhado, e naquela época, ‘beiras’ trabalhadas
revelavam um refinamento que só famílias com dinheiro poderiam ter.
“[Victor] teve muita sorte, foi iluminado, nasceu em uma casa com a dona
Marianna, que foi a madrinha dele, pagou tudo o que foi preciso,
proporcionou tudo o que ele teve”, completa Júlia.
À época, jovens negros e escravos não eram aceitos em um seminário
católico. A Lei do Ventre Livre e a Lei Áurea, que aboliram a escravidão
no Brasil, só se tornaram realidade em 1871 e 1888 respectivamente.
Mesmo excluindo suas características de nascença, Victor já não poderia
entrar pra vida religiosa simplesmente por ser filho 'só de mãe', de pai
desconhecido, como explica o atual bispo de Campanha.
Dom Diamantino Prata de Carvalho acompanha o processo de beatificação de
Victor desde o início e conta que, admirado com a força de vontade de
Victor, o bispo resolveu ajudá-lo. Para ele, a bênção de dom Viçoso foi
essencial para que o jovem pudesse se encaminhar no sonho.
"São gestos proféticos, que a gente diz na igreja. Há pessoas que
intuem, que preveem certas situações e aí já se movimentam, realizam
obras capazes de favorecer aquilo que o movimento quer, [no caso] o
movimento da abolição da escravatura”, explica.
Mas se o Brasil caminhava para uma transformação, o Sul de Minas do
século XIX não estava preparado para ver a mudança tão cedo. Após ser
aceito no seminário, como havia prometido a Deus, Victor fez o caminho
até Mariana a pé. Ao chegar, foi recebido com um convite para os fundos
da instituição, por onde os escravos entravam. Foi difícil se fazer
acreditar que ia entrar pela porta da frente, que seria aluno e não
serviçal.
Uma vez lá dentro, o tratamento foi digno de um teste de perseverança.
“A repercussão não foi boa. Os próprios colegas de Padre Victor o
humilhavam, queriam que ele fizesse trabalhos de escravo, limpar o chão,
os sapatos de todos”, continua Dom Diamantino.
Conta-se dessa época que Victor fazia o que pediam, como um escravo,
“porque não era trabalho pra ele”. Dom Viçoso interferiu na medida do
possível para que ele fosse tratado como aluno, e como a água que aos
poucos fura a pedra, ao se formar no seminário, o desprezo dos colegas
foi transformado em no mínimo respeito e muita admiração. “Foi muito
difícil, mas ele superou com muita dignidade, com muita paciência,
humildade”, finaliza dom Diamantino. O jovem negro ex-escravo se tornava
padre.
Desse período, tudo que se conta foi passado de família a família e
todos os depoimentos foram reunidos na pesquisa histórica para o
processo de beatificação. Muitos se lembram de sua voz grave e de sua
personalidade rígida, justa, porém bondosa. Padre Victor morava em um
casarão simples e vivia praticamente de doações.
À medida que a estima por ele aumentava, também aumentava o que lhe era
doado. Mas nada a ele pertencia. Conta-se que um homem pobre foi a Padre
Victor com o estômago vazio pedir o que comer. Victor havia acabado de
se encontrar com um dos muitos fazendeiros que passaram a frequentar a
igreja após se admirar com o padre negro, e dele ganhou uma quantia de
réis para ajudar na paróquia.
O envelope com o dinheiro estava no bolso do religioso, e sem pensar, ao
ouvir o pedido do homem, o entregou tudo. Quando o pedinte viu a grande
quantia que estava no envelope, voltou correndo para devolver a maior
parte e só ficar com o suficiente para comer. Em sua cabeça, o padre se
enganou ao lhe dar tanto dinheiro. Mas Victor disse: “eu já lhe dei o
que tinha e não quero de volta. Fique com tudo”.
Atitudes como essa foram repetidas por muitos moradores da época. O que
tinha na casa do padre era de todos, e todos entravam livremente para
pegar comida, dinheiro, objetos. Conta-se que Padre Victor somente
repetia que esperava em Deus e por isso nunca iria faltar.
Nos fundos de sua casa, o padre ainda cuidava de um leproso – doente
rejeitado pela sociedade da época pela falta de cura para a doença. O
homem apareceu na igreja um dia e Padre Victor ofereceu ajuda. No cômodo
onde ele passou a viver, só Padre Victor entrava e passou a cuidar do
doente por quanto houve necessidade.
Conta-se também que enfrentar o demônio não era coisa difícil para o
padre. Victor foi um padre exorcista e foram muitos que procuraram sua
ajuda para tirar o demônio de entes queridos e residências familiares.
Não há notícias de que alguma vez o padre negro não tenha conseguido
expulsar o “ser maligno”.
O sonho revelado
Na juventude, Victor começou a trabalhar como alfaiate e foi ao seu mestre que revelou primeiramente a vontade que tinha de ser padre. A reação, como de qualquer um que ouvisse de um negro escravo que queria uma posição de brancos, não foi boa. Conta-se que após sua revelação, Victor apanhou em rua pública de seu mestre. Mas reação oposta teve sua madrinha. Ao ouvir o sonho do afilhado, foi atrás do padre da cidade para saber se isso seria possível. Meio incrédulo, porém esperançoso, padre Antônio Felipe de Araújo disse que o bispo de Mariana (MG), Dom Antônio Ferreira Viçoso, visitaria a vila em breve e com ele poderiam consultar a possibilidade.
Dom Diamantino, bispo de Campanha: 'ele superou tudo com muita dignidade'. (Foto: Samantha Silva / G1)
Missão religiosa
A ordenação de Padre Victor aconteceu no dia 14 de junho de 1851, com a bênção de todos os religiosos necessários. Uma vez pároco, Victor voltou para Campanha e rezou sua primeira missa na cidade natal. Por lá permaneceu por cerca de um ano, até que chegou a notícia de sua transferência para Três Pontas. Padre Victor chegou à pequena vila em junho de 1852 para substituir o vigário da paróquia que havia morrido. Ironicamente, segundo consta no livro de Passarelli, a origem de Três Pontas está ligada a duas aldeias de negros fugitivos (quilombos), e para destruí-las, o governo da Capitania de Minas Gerais encarregou dois capitães. Após a missão concluída, eles dividiram o território em lotes de que tomaram posse. À época em que o padre negro chegava em Três Pontas, a vila reunia em sua maioria fazendeiros que faziam riqueza com o trabalho dos escravos. E se no seminário, onde Deus é chamado todos os dias, a reação em aceitar um padre negro foi difícil, em Três Pontas ela poderia ter se tornado uma tragédia. ”Ele também não foi bem recebido em Três Pontas”, continua Dom Diamantino. “O povo simples o aceitava bem, mas os graúdos... Por exemplo, o visconde de Boa Esperança falava: ‘nós pedimos um padre sábio, um padre bom e manda aqui um negão’. Mas [Padre Victor] foi para amar o povo e perdoar os inimigos." E foi preciso muita sabedoria e persistência para derrubar o grande preconceito que havia na época. Ele passou por agressões, missas rezadas para uma igreja praticamente vazia, piadas ofensivas. Mas a bondade e a caridade que o religioso continuou a dedicar aos moradores da vila, apesar de todas as humilhações, pouco a pouco conquistou até os fazendeiros mais ricos da região e ele passou a ser conhecido como o lendário padre negro de Três Pontas.Vida ao outro
Foto
mostra Padre Victor em Três Pontas; ainda se desconhece quem seria a
família ao lado dele (Foto: Arquivo Secretaria de Cultura de Três
Pontas)
Casarão
onde funcionou o Colégio Sacra Família e onde morou Padre Victor - foto
de 1939, atualmente não existe mais (Foto: Arquivo Secretaria de
Cultura de Três Pontas)
Educando uma época
Mas além da infinita bondade para com a população, Padre Victor quis doar algo mais para os moradores daquela pequena vila: educação. Conta-se que desde que chegou a Três Pontas, o religioso reunia as crianças e ensinava o que sabia a cada uma delas. Ensinou-lhes música (e se não tinha instrumentos musicais, pedaços de madeira, ferro e restos de casas se transformavam neles), francês, sobre o mundo de Deus. As crianças o adoravam. Mas em determinado momento, Padre Victor resolveu profissionalizar a educação e fundou uma escola, a primeira de Três Pontas. Ali reuniu filhos de gente simples e gente rica para aprender de professores que trouxe de fora e dele mesmo. Deu aulas no Colégio Sacra Família até quando a saúde dele permitiu. Logo depois, iniciou a reforma da capela para se tornar a Igreja Matriz de Nossa Senhora D’ajuda, até hoje em pé em Três Pontas.
Mas para tornar esses planos realidade, foi preciso muito dinheiro.
Mesmo precisando investir nas duas obras, Padre Victor não diminuiu seu
lado caridoso e continuou dando tudo o que tinha para todos. De repente,
o dinheiro começou a faltar e as dívidas se acumularam.
Uma denúncia foi feita ao Seminário de Mariana sobre os títulos não
pagos (ainda) pelo padre de Três Pontas e Victor foi chamado a prestar
contas ao bispo. Conta-se que ao chegar na sala de Dom Viçoso, seu velho
padrinho, Victor colocou seu chapéu na parede e ele permaneceu
dependurado, mas no lugar não havia gancho para segurar o chapéu.
Apesar do espanto, dom Viçoso manteve as palavras duras e quis entender o
que estava acontecendo. Padre Victor explicou tudo o que estava
fazendo, reconheceu seu erro administrativo e prometeu resolver a
situação.
Triste com sua desorganização financeira, Padre Victor voltou para Três
Pontas com uma decisão drástica: iria pedir demissão da paróquia já que
um grande mal havia feito (sem querer) para aquela comunidade. Os
moradores se espantaram com a possibilidade de perder o pároco querido e
resolveram fazer algo.
Conta-se que em uma noite se reuniram todos na porta da casa do padre e
lhe entregaram um envelope com todas as suas dívidas quitadas. O povo
mesmo reuniu dinheiro pra isso e o fizeram prometer que não deixaria
Três Pontas.
Acima de tudo, um grande homem
E ali Padre Victor permaneceu por 53 anos até deixar este mundo. Morreu no dia 23 de setembro de 1905 após ter um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Sua escola formou pessoas importantes para a região como o primeiro bispo de Campanha, dom João de Almeida Ferrão, e o médico Samuel Libânio (que hoje dá nome ao hospital de Pouso Alegre - MG).
Mas sua bondade foi além e formou uma geração que pôde enxergar uma alma
semelhante apesar de todas as cores que pudessem nos separar como
humanos. "Ele estava acima das humilhações, perseguições. Ele via
realmente com o olhar de Cristo”, afirma dom Diamantino.
"Ele foi um grande ser humano, uma pessoa que tinha muita fé. Acredito
que ele foi um homem muito autoconfiante, tinha muita força, muita
vontade e fez exatamente o que ele quis. Tudo o que ele podia dar, ele
deu. Morreu com a roupa do corpo. Ele realmente foi um homem de Deus",
finaliza Júlia.
Fonte: G1
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