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segunda-feira, 16 de abril de 2012
10 ARTISTAS BRASILEIROS: GETÚLIO DAMADO
O BLOG ARTE BRASIL REPERCUTE A VIDA E OBRA DOS 10 ARTISTAS ENFOCADOS NA EXPOSIÇÃO ”TEIMOSIA DA IMAGINAÇÃO”, DO INSTITUTO TOMIE OTHAKE.
10 ARTISTAS CUJAS CONTRIBUIÇÕES AO UNIVERSO DA CULTURA POPULAR SÃO IMENSO E QUE JÁ CONSTITUEM PARTE VALOROSA DO BRASIL CONTEMPORÂNEO.
MAIS: www.institutotomieothake.org.br
Getúlio Damado
1955, Espera Feliz - MG
Getúlio Damado nasceu em Espera Feliz e foi viver no Cantinho do Céu. O nome da idade mineira onde veio ao mundo em 1955 é oficial, mas a forma como batizou o pedaço de calçada em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, onde ergueu seu colorido mundo artístico, é mais uma de suas criações. Ali, à sombra de dois frondosos pés de castanha-de-macaco, Getúlio construiu sua oficina de trabalho: o bonde amarelo em tamanho quase real espelha o que vai e vem pelos trilhos, com moradores e suas sacolas de compras e turistas e suas máquinas fotográficas.Getúlio também batizou seu bonde: Bonzolândia. É ateliê, loja, depósito, obra de arte.
Lá, ele faz os bondes em miniatura que viraram marca registrada de seu trabalho, e as outras obras que vieram no trilho: bonecos, caminhões, pássaros, cavalos, pinturas, poesias. No emaranhado de coisas dentro de seu ateliê, além de ferramentas, tintas e pregos, o artista guarda suas matérias-primas: garrafas, embalagens, tampinhas de refrigerante, restos de madeira, sucata, quinquilharias. Ele tem uma definição bem abrangente para o material que lhe serve: “Qualquer coisa que seja flexível e que aceite prego ou cola”, diz. Fora da Bonzolândia, o material usado por Getúlio se convenciona chamar de lixo. Ele roda “todas as ruas do Rio” garimpando o que para ele é valioso: embalagens de produtos de limpeza, pés de cadeira, pratos, bandejas, telefones antigos, grades de fogão, tampinhas.
“Tampinha, se precisar, eu arrumo lugar até debaixo da minha cama. Eu já sou conhecido em festas. Jogou uma garrafa de Guaraná fora, eu seguro a tampa”, conta ele, que também pede que os clientes mais próximos selecionem parte de seu lixo para ele. “Quando o freguês volta e vê que o material que ele ia jogar fora se transformou numa obra de arte, ele se entusiasma e leva a peça.”
Em Santa Teresa, basta perguntar pelo bonde de madeira para ser apontado para a Rua Leopoldo Fróes. Getúlio tratou de demarcar seu espaço, espalhando as obras à venda e pintando muros e cartazes. É no cantinho ao lado da escada que ele gosta de pintar – basta observar o perímetro a seu redor, com o calçamento todo salpicado de amarelo, vermelho, azul. “É daqui que eu falo com o mundo”, diz ele, com a camiseta velha, o chapéu de pano e os pés de chinelo igualmente pontilhados de tinta.
O mineiro chegou ao Rio no fim de 1970, aos 15 anos, depois de assistir à sua última Copa do Mundo em Espera Feliz. A mãe e o pai morreram cedo, mas graças a ambos o artesanato era presente em casa. “Minha mãe fazia bordado, tecelagem, peneira, um montão de coisas”, lembra. Já o pai, camponês, levava a família consigo para as fazendas onde arrumava trabalho. Ensinou Getúlio a fazer gaiolas, arapuca para pegar passarinho e armas de madeira.
No Rio, o jovem serviu o Exército, trabalhou na feira livre “até apanhar idade”, conseguiu emprego numa rede de supermercados e, quando a rede foi vendida, acabou investindo suas economias para virar um dos sócios. Não deu certo. Getúlio saiu falido e chegou a Santa Teresa com o rabo entre as pernas, 25 anos atrás. “Montei uma barraquinha de doces e revistas até organizar a vida”, conta. Nas horas vagas fazia artesanato. Mas não adiantava fazer gaiolas e arapucas: “A cultura era outra. O pessoal perguntava: ‘o que o passarinho fez para ficar preso na gaiola?’ ”
Vendo o bonde passar pelo bairro, teve a ideia de fazer um. “Foi um sucesso, ninguém tinha. Sou considerado o pioneiro do bonde”, orgulha-se. O primeiro foi feito “na mão e na faca”, copiado do modelo vivo da rua. “Toda hora ele passava e eu dava uma sacada”, diz. Este primeiro, ele não vende. “Já rejeitei uma dinheirama nele. É a única peça que está guardada a chave. O resto fica tudo aberto aqui”, conta, apontando para as obras a seu redor, que dormem na rua mesmo. “A minha glória é essa, que as pessoas não mexem comigo. Graças a Deus sou querido aqui, tenho o apoio da comunidade.”
A ideia de fazer um boneco com restos de lixo veio depois que um eletricista, João Francisco, montou oficina na rua e pediu que Getúlio o indicasse à clientela. O artista resolveu fazer propaganda para o rapaz. Pegou madeira, garrafas e tampinhas, transformou em cabeça, tronco e olhos e, concluído o boneco, fez uma seta apontando para a oficina: “Conserta-se televisão”. Entusiasmada, uma professora do bairro quis comprar o boneco e levou Getúlio para participar de um seminário sobre plástico e reciclagem na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“Eu pensei assim, ‘quem compra o primeiro compra o segundo, né?’ E assim estou fazendo boneco a vida toda. Posso correr o risco de dizer que os bonecos me sustentam.”Os bonecos têm nome e história. Maria Rita, Cheroso, Peixoto, Carlito, Chico Muricó, até Pelé e Dilma. E tem o Severino na Cidade Grande. “É aquele camarada sertanejo que vive num sacrifício danado e, quando chega na rodoviária, na casa dos parentes, vê água encanada, banheiro, luz elétrica, tudo direitinho, e fica louco, não volta mais para o Sertão”, explica.
“Esse sou eu no passado.” Se encontra uma bandeja, um prato ou qualquer anteparo, Getúlio transforma em página em branco para seus quadros escritos, como este: “Pensamento deste que vos escreve. Se esse bonde falasse da vida desse mineiro, tinha assunto para uma semana. E até mesmo para o ano inteiro.” Outro responde à irritação que sente quando corrigem o seu português. “Acham mesmo que vou desmanchar um trabalho por causa de uma letra?”, questiona.
A implicância motivou um quadrinho “para o tal do doutor”, onde Getúlio conta: “Não estudei e nem fiz nenhuma formação. Resultado disso, aprendi a bater martelo, serrar, colar, pregar e montar.” E completa: “Eu falo a língua do mundo.” O artista diz que nunca fez uma obra que não sentisse prazer em fazer. “Se eu quero fazer uma pintura, é uma energia que passa, e acredito que as pessoas gostam por isso. Tudo que eu passo numa pincelada as pessoas entendem. Nem sempre está escrito, mas elas entendem como se estivessem lendo.”
Autor: Júlia Stein (jornalista)
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