quinta-feira, 30 de julho de 2015

PALESTRA DE MARIO GIOIA EM LONDRINA



Transparentes, vazados, fluidos, moventes

Vivenciar um edifício sem portas, circulando à época de sua formação universitária, pode representar um ato transgressor, mesmo que não aparente. Como importante testemunho pessoal, acredito que a frequência cotidiana no prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (Universidade de São Paulo), de autoria de Vilanova Artigas com Carlos Cascaldi, de 1961, reserve em minha biografia um lugar especial, com ressonâncias futuras e espacialidades, naqueles anos, decisivas na percepção de mundo.

Feita essa digressão inicial, é com felicidade que posso encarar a empreitada de ajudar a artista Patricia Lopes a povoar de gestos poéticos e materialidades frágeis e, ao mesmo tempo, potentes o Museu de Arte de Londrina, sua cidade natal. A instituição agora utiliza a antiga Rodoviária local, projeto de Artigas (1915-1985) datado de 1950 e indubitavelmente um patrimônio da modernidade arquitetônica nacional.


Para a individual Momentos, Lopes tem como guia a transparência. É mais evidente na instalação em que ela dispõe uma espécie de cortina com figuras gravadas no plástico que remetem a tempo _este um título de outra série também presente na exposição. É como se a artista convidasse o público a um passeio sensorial que evoca uma corporeidade frágil, colocando o (ex) observador em meio a camadas de uma luz ‘matérica’ que termina por duplicar a pele de vidro tão habilmente construída por Artigas para destacar as relações entre o interno e o externo. Também se faz curioso que os relógios agora gravados na superfície transparente criem um eco ruidoso a um dos fortes conjuntos de outro museu próximo, cuja parede repleta de relógios de variadas épocas tornem ainda mais forte a sensação do fim de um tempo ‘ferroviário’ (mesmo que estejamos numa outra era de confusas definições).

E ainda que as esquadrias, fachadas, revestimentos e outros elementos arquitetônicos necessitem de urgente restauro, Lopes mantém a essência do projeto de Artigas, forjando novos elos e sem abdicar da própria poética e autoria. “Esse sentido de transparência é perseguido em cada detalhe pelo desenho arquitetônico, seja pelo sentido aéreo da cobertura em abóbadas, seja pelo pano de vidro que veda o interior do trapézio. Este, por sua vez, reenfatiza o sentido de fluência espacial pelo seccionamento do bloco em dois (passagens e restaurante no maior e juizado no menor), abrindo em posição intermediária uma cavidade vazia de dupla altura”1, avalia João MasaoKamita sobre a edificação do arquiteto paranaense.


Outro dado interessante é como a série África, exibida anteriormente em Londrina, se reconfigura no novo recorte. Se o conjunto já se situava numa saudável mescla de linguagens, entre a fotografia, a colagem, a pintura e o tridimensional, por exemplo, agora ganha a multiplicidade da gravura. Fica o que eu já registrara: quando a artista prescinde dessa sua anterior marca gráfica ou a utiliza de maneira a retirar seu significado inicial (o serial-visual é mais importante que o dado da comunicação e do ‘entender’), parece gerar peças mais desenvolvidas, maduras.

E, tanto em África como nas novas séries Tempo e Vitória, é relevante apontar que as imagens ‘reais’, coletadas e produzidas por Lopes, são retrabalhadas de diferentes formas e procedimentos por meio de ferramentas atuais de produção, a ressaltar novas materialidades e outros corpos de obra _ em especial texturas, sobreposições, paletas. Motivos evitados na gramática contemporânea _ flores, por exemplo _ deixam a condição decorativa e, desconstruídos e renovados, surgem em novos arranjos plástico-visuais. Assim, num lócus tão especial não apenas para a cidade paranaense, mas para a modernidade nacional, a obra em desenvolvimento de Patricia Lopes dá a sua contribuição em variados âmbitos para dias mais alvissareiros num espaço tão prenhe de significados.

Mario Gioia, julho de 2015

Graduado pela ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), faz parte do grupo de críticos do Paço das Artes desde 2011, instituição na qual fez o acompanhamento crítico de Luz Vermelha (2015), de Fabio Flaks, Black Market (2012), de Paulo Almeida, e A Riscar (2011), de Daniela Seixas. É crítico convidado desde 2014 do Programa de Exposições do CCSP (Centro Cultural São Paulo) e fez, na mesma instituição, parte do grupo de críticos do Programa de Fotografia 2012/2013. 

No centro, produziu material crítico sobre os artistas Rodrigo Sassi, Renata De Bonis, RomyPocztaruk, Tatiana Cavinato, Marcelo Tinoco, Beatriz Toledo e Breno Rotatori. Coordena pelo quinto ano o projeto Zip'Up, na Zipper Galeria, destinado à exibição de novos artistas e projetos inéditos de curadoria. Na temporada 2014, assinou a curadoria de Decifrações (Espaço Ecco, Brasília), coletiva com Artur Barrio, Daniel Senise, Daniel Escobar, João Castilho, Luciana Paiva e Virgílio Neto, entre outros.

1.     KAMITA, João Masao. Vilanova Artigas. São Paulo, Cosac Naify, 2000, p. 17

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